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quinta-feira, 29 de julho de 2010

A Visita

A campainha toca.
-Calma, já vou! Já vou!
A velha senhora abre a porta e vê uma silhueta á sua frente.
-Olha, me desculpe se eu te conhecer e não te reconhecer agora,bem. É que eu fiquei de trocar as lentes dos óculos á dois meses e to enxergando agora tudo embassado, sabe? Mas quem é você mesmo?
A Morte não sabe o que responder. Ora se disser seu verdadeiro nome é capaz de que ela feche a porta e se esconda dificultando seu trabalho mais ainda.
-Bem, eu sou...
-Ah, é o Ademar, né? O menino aí da portaria, do turno da noite, né? Agora que eu vi, você sempre costuma andar com essas roupas escuras. Me desculpa, meu bem, por não ter te reconhecido, viu?
-Não...
-Já sei, você veio buscar o panetone, né? O Arlindo me disse que você ficou de pegar e num pegou. Mas eu guardei, viu. Tá lá na geladeira! Entra aí!
A Morte, diante do convite, recusa veemente:
-Não, não!
-Que isso, entra aí, meu filho! Eu tava preparando mesmo o café. Senta aí e toma um pouco. Entra vamos!
-É que eu tenho que fazer mais coisas...
-E vai ficar aí de pé na frente da porta, que nada! Não precisa ter medo, eu sou só uma velhinha zureta. Entra aí.
E a senhora puxa pela mão a relutante visita para dentro de seu apartamento.
-Olha só não repara na bagunça,viu! Nossa, você tá frio, meu filho! Tem pressão alta? Ah, senta aí que vou trazer o café e o pão.
Assim que a senhora vai para a cozinha, a Morte solta um suspiro de cansaço, daqueles que se solta quando se prevê o trabalho duro pela frente. A Morte não gosta de criar muita intimidade com suas vítimas, isso acaba interferindo no trabalho. Depois você fica com pena e não consegue ceifar.Pensando melhor, ela acha que seria melhor acabar com tudo de uma vez. Se dirige para a cozinha, a senhora está na pia passando o café do cuador para a garrafa térmica, de costas. É o momento perfeito. Prepara para tocá-la e assim levá-la, quando a senhora subitamente vira.
-Nossa! Ah, você taí! Olha, menino, tá aqui o café. Você prefere puro ou pingado?
A Morte diante da solicitude da velha senhora desiste do plano.
-Puro.
-Eu também gosto de puro. Não é que eu não goste de pingado, é porque pingado já não paece café, pra mim parece mais é achocolatado, sabe? Senta aí na mesa que eu vou trazer o pão. Você gosta de pão de milho?
-É... Sim...
-Ih, meu filho, então me desculpa, só tenho pão francês.
-Não tem problema.
Enquanto conversam a senhora colocaum pano de prato sobre a mesa e o saco com pão sobre ele.
-Vou buscar agora o requeijão e o presunto, tá, meu filho?
-Tá certo...
A Morte, meio conformada, pega o copo com café e dá uma golada. Chega a senhora com o requeijão, o presunto e a faca.
-E tá muito forte?
-Não, tá bom.
-Se num tiver é só falar, eu faço outro.
-Não, não!
-Não é trabalho nenhum! Eu faço rapidinho. Eu até gosto, sabe, porque assim eu fico ocupada. O problema, meu filho, é quando você não tem nada pra fazer. Cabeça vazia, oficina do diabo. Já ouviu esse ditado?
-Sim...
A senhora corta seu pão ao meio e passa a faca parao convidado. Este pega lentamente seu pão e o corta. Depois de colocar presunto do seu pão a senhora lhe empurra uma fatia.
-Não quer colocar presunto aí?
-Não...
-Você não gosta de presunto?
-Gosto, mas vou colocar só requeijão...
-Você é que nem meu filho, ele não suporta misturar as coisas sabe? Quando eu colocava inhame e feijão e arroz pra ele, ao invés dele amassar o inhame, sabe, e comer junto com o feijão, ele separava num canto o inhame e comia o feijão e arroz primeiro pra depois comer o inhame.
Agora um silêncio. Ambos estão mastigando seu pão. A senhora come seu pão, como se tivesse fome, enquanto sua visita o devora lentamente, entre um golada e outra de café. Após terminar seu pão a Morte recolhe as migalhas que caíram para fora do pano e coloca num canto dele.
-Meu marido fazia isso.
-O quê?
-Ele fazia isso, meu marido. Depois que comia o pão ele pegava as migalhas e colocava no pano, depois ele pegava o pano e balançava ele fora de casa, pra cair as migalhas. Eel tinha uma criação de galinhas, aí quando ele fazia isso as galinhas já vinham tudo comer os pedaçinhos de pão.
A Morte coloca as mão sobre as pernas como se não fosse mais comer nada, a senhora está terminando o segundo pão agora.
-Eu gosto de pão assim quentinho. Vou lá na padaria cedo pra pegar os primeiros. Pão que fica muito tempo fora do forno fica meio duro, borrachudo, já percebeu? Eu não gosto de pão borrachudo. Ainda mais porque eu já não tenho muitos dentes, imagina eu perder mais. Ahah...
A ligeira gargalhada da senhora encontra companhia no também curto pigarro do convidado, como se fosse uma manifestação de apreço.
-Não vai comer mais não, meu filho?
-Não...
-Come mais, Ademar, você tá muito magrinho, meu filho!
-Não... É que eu preciso ir embora...
-Mas já?
-É...
-Fica mais um pouquinho!
-Tenho que trabalhar.
-Ah, tá certo... Quando a gente tem que trabalhar tem que trabalhar mesmo. Trabalho é o que faz você ser um homem, sabia disso? Trabalhar não é vergonha, é honra. Conitnue trabalhando, meu filho, você tá certo. Você não é que nem esse pessoal que vive aí nas costas dos pais gastando dinheiro em carro e drogas. Você tá certo! Eu não vou ficar te atrapalhando mais não, meu filho.
-Obrigado... pelo café.
-Ah, ia quase me esquecendo! O seu panetone! Peraí que vou lá buscar.
A Morte se levanta da cadeira e se dirige á porta, pára e espera a senhora voltar.
-Tá aqui! Guardei o maior deles pra você, viu, mas não fala nada pro Arlindo, se não ele fica com ciúme, viu? ahah
-Tá certo...
A senhora abre a porta, a visita sai, a senhora se despede:
-Até mais, meu filho! Bom trabalho!
-Obrigado.
A senhora tranca a porta. A Morte permanece no corredor do prédio, segurando o panetone. Mais um dia sem levar a senhora, mas a culpa não é dela. A senhora é muito simpática, o que poderia fazer? Recusar um café? Mas tem que fazer seu trabalho. A Morte estribucha um desabafo:
-Ah... eu não fui feito para isso...

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