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sábado, 10 de julho de 2010

LUGONES: A CÓLERA DOS DEUSES

Lugones: a Cólera dos Deuses


Arthur Reis Arendt
(artigo da revista de cultura Aymoré, vol. 54, jul-ago, 1937).

Encontramo-nos em pleno século XX, saídos do auge da tecnologia e da ciência moderna, e, no entanto, a maioria de nosso planeta ainda se configura em incógnita. Não precisamos ir muito longe para darmos um bom exemplo: a região norte, principalmente a província amazônica. Nós nos vangloriamos de ser um dos países mais fortes da Liga Panamericana, mas o poder central ainda não pisara nessa região. A Amazônia ainda nos é um enigma.

Descoberta pela expedição de Alfredo Pacheco Favela em 1545 e então batizada como Sertão da Água Doce, a região nunca foi totalmente colonizada. A ocupação portuguesa encontrou enormes problemas como o clima, os insetos, as doenças tropicais e as guerreiras indígenas conhecidas como Icamiabas, responsáveis pelo rebatismo da região como Terra das Amazonas. Em vista de todos esses problemas a empresa colonial portuguesa abandonou a região em 1715, desde então o sistema econômico predominante localmente tem sido o contrabando e o sistema político uma rede pulverizada de chefes regionais, ligados á pequenas tribos - a única exceção aconteceu com a Confederação Baré, quando as tribos do Vale do Amazonas se uniram sobre a liderança de um tuxaua (chefe) conhecido como Perequê para combater os contrabandistas, mas com sua morte ela se dissolveu.

Em 1875, a situação muda radicalmente. O governo central da República de Pindorama, com medo de perder suas províncias para seus vizinhos, inicia um processo de centralização, nomeando para cada província um comandante militar com poderes quase supremos, cuja missão seria assentar as bases administrativas e político-militares nas províncias e defendê-las, simultaneamente. Esses comandantes ficaram conhecidos como caudilhos. O caudilho designado para transformar a Terra das Amazonas na Província da Amazônia era o general Victor Lugones.

Com uma ficha impecável, o general Lugones era um verdadeiro intelectual, um homem dado á reflexão e um hábil estrategista. No entanto, o relato do aviador e aventureiro Ulisses Ramirez Figueira, que visitou a região em 1893, encontra no comando da província o general Lugones, mas um Lugones diferente. Um Lugones louco, imprevisível e brutal, responsável por milhares de massacres. O que terá acontecido com o caudilho Lugones? Será que a selva terá o transformando? Mas como?


I

Antes de respondermos a essas intrigantes perguntas que certamente iluminarão nosso conhecimento sobre a Amazônia, precisamos apresentar melhor nosso objeto de estudo, o general Victor Lugones.

Victor Vélez Lugones nasceu em 22 de outubro de 1834, na pequena cidade de Pouso dos Guaianazes, no interior da província fluminense. Filho de um comerciante, imigrante espanhol, com uma costureira nativa, a única possibilidade de uma boa formação e ascensão social para Lugones era o Exército. Por isso, com 8 anos completos entrou para a corporação. Após completar seus estudos fundamentais, Lugones, um rapaz ávido pelo conhecimento, decide continuar estudando, se aprofundando não somente nas técnicas militares (estratégia, história da guerra, etc.) O jovem oficial completava seus estudos na Academia com sua curiosidade; frequentava as mais obscuras livrarias e sebos á procura de livros que lhe interessasse, principalmente os de filosofia.

Foi num desses sebos que encontrou com sua futura esposa, Ana Maria Rândi, instruída jovem de uma família tradicional de São Gabriel de Batatais. Os dois discutiram muito sobre a natureza humana e a realidade das coisas, mas não demoraram muito para perceberem que estavam apaixonados. Em 1864, Lugones, promovido á coronel, casa-se com Ana Maria, depois de um ano de noivado. Eles tem 3 filhos: Alberto, Solano e Victor. Victor, no entanto, morre no parto, deixando dona Ana Maria inconsolável por meses.

Curiosamente, na mesma data eclodem as Guerras Ítalo-Turcas e Lugones, agora alçado ao generalato, é chamado para defender a frente norte do estreito de Gilbratar. Sua missão é não deixar passar as eventuais tropas armenas. No entanto, Lugones enfrenta muita resistência e desobediência de seus subordinados. Em razão disso aplica duras penas neles, como surras de chibata. O infeliz episódio eclipsou um pouco a promissora carreira do general. Seu amigo dos tempos de Academia, Francisco Salinas, no seu livro de memórias revela que Lugones voltara muito abalado da guerra; mesmo não tendo participado de nenhuma batalha decisiva, estava muito distante, tão marcado que estava pelo episódio da chibata.

Alguns anos depois Lugones retomou seus estudos, dessa vez na área conhecida como Psicologia de Massas. Publicou dois admiráveis estudos: Da Ordem (1873) e O Imaginário das Massas(1874). No primeiro analisa a idéia de poder não como se fosse algo imposto, mas que emanasse das pessoas, ou seja, que o poder resultaria da vontade de dominarem e serem dominadas. Já no segundo estudo fala de arquétipos presentes no imaginário social que podem ser explorados por um governador sábio para criar a paz social.

Atraído por seu amigo Salinas, Lugones aceita trabalhar no Ministério da Guerra como chefe do gabinete de estratégia, criando novas maneiras de repressão. Maneiras essas que foram rapidamente aplicadas pelo gabinete de segurança nas lutas por terra na província de Caburé. Caburé foi uma grande mancha na carreira de Lugones; seus métodos de contenção foram responsáveis por mais de 20 mortes de lavradores inocentes, entre eles crianças, que ocupavam o bairro de Santo Antônio de Leverger.

Em 1875, o governo central lança o Plano de Integração Nacional. Seu amigo no Ministério da Guerra, Salinas, indica seu nome para a comissão responsável pelo projeto. Há que se considerar, no entanto, que o governo e a corporação estavam um pouco descontentes com toda a fama de Lugones no momento, portanto, sua participação no projeto pode ter sido um meio de afastá-lo dos holofotes. Mesmo com medo da opinião pública á seu respeito, tanto o governo como o Exército reconheciam em Lugones um competente líder, com um futuro promissor no Exército , quiçá na Presidência da República.

Pouco antes de partir acontece mais uma tragédia: Ana Maria vem a falecer. Salinas nos revela mais uma vez em suas memórias que a morte do filho caçula lhe comoveu muito. E nos anos em que seu marido esteve participando da guerra e do gabinete de estratégia, ficou muito sozinha. Ao saber da notícia da nomeação de Lugones como caudilho responsável pela Terra das Amazonas, prevendo as dificuldades que viriam a seguir, se matou. Um episódio tão curioso quanto trágico, abordaremos ele com minúcia posteriormente.

Lugones, em vista da morte de sua mulher, foi um dos últimos caudilhos a partir em missão. Seu efetivo consistiria em um batalhão de soldados, duas esquadras aéreas e um dirigível fortemente munido de canhões e metralhadoras. Todo efetivo contava com a figura do chefe-médico, responsável pela equipe médica da tropa, o mecânico, um grande entendido em todas as máquinas que deveria consertá-las ou aprimorá-las quando possível, e um conselheiro militar, com a função de supervisionar o trabalho do caudilho. O chefe-médico da equipe de Lugones era o Dr. Roberto Lameira, eficiente comandante do Hospital da Base de Canguçu, seu mecânico era conhecido informalmente como Ferrari e seu conselheiro militar era o experiente e histórico marechal Enoch Carranza, grande nome da pacificação da República do Prata.

A partir daqui a vida do general Lugones é envolta em mistério e em certo desconhecimento. Nossa fonte a partir de agora será o livro de Ulisses Ramirez Figueiroa, Odisséia Amazônica. O autor foi recrutado pelo caudilho depois que este descobriu suas qualidades na aviação. No tempo em que esteve trabalhando para o caudilho ouviu muito a respeito de sua empresa amazônica por meio de seus colegas de trabalho. Segundo os mais antigos, quando chegaram aqui o contrabando dominava a região. Foram anos de guerra, perderam muitos homens. A situação se inverteu a partir do momento em que Lugones é aclamado como "tuxaua" pelos Barés que enxergam na figura imponente do general um herói reformador tal como Perequê. Os contrabandistas eram inimigos da maioria dos Barés, bem como as Icamiabas. Lugones conquistou o apoio dos Barés e com isso sua ajuda na luta contra os contrabandistas. Em pouco tempo, o cartel de Aguirre saíra da Amazônia.

Devido a falta de reforços expedidos pelo Ministério da Guerra á missão, Lugones toma uma decisão difícil: firma um contrato com os contrabandistas que acabara de expulsar, em troca de algumas drogas da selva receberá deles bens de consumo e armas. O próximo passo seria unificar todo o Vale do Amazonas através da Confederação Baré. Os maiores inimigos desta expansão foram as Icamiabas que foram quase totalmente exterminadas. A partir do Vale, Lugones se expandiu pela Bacia Amazônica, seguindo o curso dos rios. Estabeleceu torres de vígia, abriu campos no meio da selva, construiu pequenas cidades ao longo de seu domínio e construiu sua base logística numa árvore centenária no interior da selva.

Ulisses posteriormente deserdou, tendo de se refugiar entre as populações ribeirinhas. Uniu-se a um movimento de resistência, entre tantos na região, e ouvia relatos terríveis sobre os massacres promovidos pelo caudilho. Um deles, o da tribo Waimiri, ficou conhecido pelo grau de crueldade: as crianças foram presas em uma oca onde atearam fogo. Dizem que, depois disso, Ferrari também deserdou as forças armadas.

Em 1894, um ataque áereo á base de Lugones, do qual participou Ulisses, destrói sua torre de operações, matando o junto. Após sua morte, o Estado amazônico criado por ele se fragmentou. A Confederação Baré herdou, no entanto, sua infra-estrutura e nos anos seguintes tornaria-se o embrião de um novo Estado amazônico, o que conhecemos hoje.

II
Depois de tomarmos conhecimento da vida dessa misteriosa figura, cabe nos agora algumas observações.
Primeiro, a morte de sua mulher. Em entrevista com o marechal Francisco Salinas, descobrimos, extra-oficialmente, que ela fora assassinada. Desconfiado do ocorrido o general mandara fazer uma autópsia que revelou morte por estrangulamento e não por ingestão de remédios como dissera Lugones. O resultado da autópsia saiu após a nomeação de Lugones e sua consequente partida, portanto, já era tarde demais para prendê-lo. Acreditamos que o marechal Salinas tenha se chocado com o ato do velho amigo, como transpareceu em nossa conversa informal.

A prisão de Lugones não foi efetivada por causa da mudança de gabinete. O presidente J. Barros renunciara dias depois e assumira o vice Carlos Luiz que começara uma mudança radical no Estado Maior e consequentemente no Ministério da Guerra, temendo um golpe militar. Os pedidos de prisão de Salinas não foram levados em consideração pelo novo Ministério, tão interessado ele estava em afastar membros conservadores da caserna que a prisão de um ilustre oficial poderia gerar mais burburinho. Nos anos seguintes a missão Amazônia foi esquecida pelo gabinete, o que explica os reforços que nunca vieram para Lugones.

Ora, esse surpreendente fato nos mostra que o general já havia mudado antes de entrar na selva. Os motivos que levaram a matar a esposa ainda nos são desconhecidos, mas podem ter origem no trauma da guerra. Um intelectual como ele, tão interessado no diálogo e na reflexão, deve ter se chocado com a anarquia da guerra, aspecto que foi sua principal preocupação nos anos seguintes, como evidenciam seus artigos e estudos sobre o problema da indisciplina.

Outro ponto interessante: Ulisses em seu relato nos fala que a figura de Lugones era temida por todos, desde os ribeirinhos até os oficiais de seu mini-Estado Maior. Conhecido como "o tuxaua", "generalíssimo" ou ainda "demônio caraíba" entre seus inimigos. De onde vinha esse temor? O piloto nos fala que os Barés vinham nele um herói reformador, uma espécie de semi-deus que controlava máquinas incríveis como o potente dirígivel. É possível que sua crueldade tenha contribuído também para essa imagem de herói reformador ao ser impiedoso com os inimigos.
Ulisses nos fala ainda do temor vindo dos próprios oficiais: "O interessante era que a maioria dos oficiais, mesmo os generais, temiam sua pessoa. O motivo era principalmente sua imprevisibilidade. Diziam que mudava de planos no meio da noite ou criava novos do nada e os punha em prática o que exigia uma poderosa organização dos oficiais, pois, uma vez não efetivados os planos, expurgos eram cometidos".
O que aqui temos senão uma autocracia; a figura do caudilho dominava toda a vida da população, era amado ou odiado por todos. O que explica a desintegração de seu império após sua morte, tão centrado estava a organização político-militar em sua pessoa que não sobreviveria sem ele.

Mais uma vez recorremos a Ulisses: "Na verdade era assustador o modo como ele parecia totalmente insano. Mais assustadora ainda era como ele tornava-se rapidamente extremamente lúcido, o que me dava a impressão de que fingia saber o que estava fazendo, que fingia estar louco (...)". Esse é um dado muitíssimo curioso: fingir estar louco. Bem, é comum ao neurastênico espasmos de lucidez, no entanto, é interessante também avaliarmos a hipótese de Ulisses. Por quê? Talvez a imprevisibilidade e loucura de Lugones sejam intencionais. Explico: Lugones dedicou boa parte de sua vida a tratar a indisciplina e todos sabem que a selva tropical é um lugar suscetível á desobediência e a marginalidade, melhor exemplo disto está nos episódios coloniais de sua história, talvez ele tenha descoberto o potencial do medo, através da imprevisibilidade, na construção da disciplina.

Outro fato interessante é o conteúdo ideológico do caudilho. Tanto Ulisses como Salinas diziam que Lugones tinha uma espécie de imponência, do tipo daqueles homens que tem certeza de seu objetivo. Ulisses nos fala que nos poucos discursos que ouviu dele podia-se ver seu ideal em transformar a Terra das Amazonas numa província de progresso e civilização. Um progresso e civilizaçaõ que deveria passar pelo extermínio dos dissidentes e a destruição da selva. Mais uma vez, volta a imagem de herói-reformador, mas de um tipo diferente, um herói-modernizador; igualmente implacável e mítico, uma espécie de semi-deus, porta voz dos deuses do Progresso e da Ciência. É irônico, no entanto, que para construir a civilização na Amazônia Lugones tenha se valido da loucura, da brutalidade e do medo.

Pessoas que se consideram acima do Bem e do Mal, por causa de seus ideais transcendentais, sempre desrespeitam o mundo sensível, o mundo das práticas, do cotidiano, renegando a ética para debaixo do tapete. Analisando pelo prisma do idealismo, tlavez Lugones seja uma dessas pessoas. Acreditar estar acima de qualquer julgamento pode ter lhe dado o aval para seus atos deploráveis, seja em nome da disciplina seja em nome do Progresso. Assim sendo, Lugones seria um dos monstros produzidos pela razão, como diria o grande pintor Francisco Goya.

III
Gostaria de ressaltar que o que foi exposto logo acima não passa de conjecturas; nunca saberemos com certeza o que terá passado pela cabeça de Lugones, nunca saberemos como ele se transformou nesse ícone de maldade e insanidade. Pode ser que a selva tenha um peso considerável nessa transformação, pode ser que não. A verdade é que nunca saberemos, porque nunca descobriremos, é o que me parece, os mistérios da alma humana. Falar de Lugones não é somente uma aula de História, uma história vergonhosa com certeza. Falar de Lugones é falar da própria alma humana. Nossa alma de certa forma é uma imensa selva tropical, quase insondável, onde habitam monstros temíveis e maravilhas incríveis. Mesmo com toda a tecnologia que dispomos não é possível ainda conhecê-la em todo, somente parcialmente.

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