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domingo, 30 de janeiro de 2011

Afoturismo VIII

Sabe, um dos grandes problemas da humanidade através dos séculos era o trabalho. Não sou um apologista do ócio, não estou falando do trabalho em si, mas das péssimas condições de trabalho que sempre existiram em qualquer profissão, compreende? Por exemplo, um mineiro está submetido á péssimas condições de trabalho, pode morrer com efizema pulmonar com 10 anos de serviço ou em um desabamento. Ninguém quer fazer esse trabalho, mas alguém tem que fazer esse trabalho. E aí como ficamos? Temos que aceitar esse ônus.
Mas no futuro as coisas irão mudar. Péssimas condições de trabalho são coisas que não sabemos o que é há um tempo. As profissões existentes agora não nos oferecem tanto riscos assim. As pessoas podem fazer o quiser, o que não quer dizer que não existam pessoas que façam determinada tarefa só para receber um dinheirinho, não. O que quero dizer é que esse trabalho perigoso e arriscado acabou. Sim, acabou. Se arriscar para quê? Não precisamos mais nos arriscar; as formigas fazem isso para gente. Pode parecer meio ridículo, mas é verdade: formigas. Modifique-a geneticamente e implante um chip em sua cabeça que emita ordens e pronto! Pode parecer meio insensível mandar esses pequenos e inocentes animaizinhos limparem esgotos ou abrirem túneis de exploração com dinamite e morrerem por nós, mas elas aguentam. Afinal, elas foram feitas para isso; tem exoesqueleto, né?

Pecado

Cidade pequena. O centro da cidade, urbanística e simbolicamente, era a Igreja. O padre era quase o prefeito.
O menino não era daqueles levados, mas fazia parte da turma dos levados. Ele e os outros garotos colocavam bombinhas no rabo dos gatos, tentavam levantar a saia das beatas em dia de procissão Coisas do tipo.
O menino levava bronca da mãe e do padre quando era pego. Ás vezes nem tinha feito nada, mas só por estar junto com os garotos já apanhava. Pior era o castigo dado pelo padre: rezar cem padre-nossos e mil ave-marias ajoelhado no milho. O padre já tinha um pote especial com milho para os garotos. Sumir com esse pote era um dos maiores desejos dos garotos.
Um dia seus amigos estavam todos reunidos em torno do mais atentado da turma. Não estavam correndo, jogando bola de gude ou subindo nas árvores. Então deviam estar fazendo algo muito especial. O menino se aproximou e descobriu. Eram cartões de mulheres peladas. A maioria era morena. O cabeça da turma, aquele que achou o baralho inclusive, ficou logo com a loira e a mais peituda. Mas vendeu o resto do baralho. Vendeu não, trocou com os outros por alguma coisa. O menino conseguiu uma por um pote de geléia de jabuticaba da sua mãe. Era uma morena com longos cílios, encostada em uma coluna com seus braços por cima da cabeça deixando seus seios assim completamente á vontade.
Enquanto ninguém via, ele pegava o cartão e admirava a sua morena. Ficava pensando se todas as mulheres eram assim por debaixo do vestido. Passava alguém na rua, escondia. O menino passou a olhar as beatas de outro jeito e passou olhar a menina do outro lado da rua de outro jeito. Era morena também, não tinha os cílios compridos, mas tinha olhos grandes. Aliás, parecia muito com a sua morena. Talvez fosse parente dela.
Apesar do sermão do padre dessa semana ser direcionado ás roupas “ousadas” de uma moça que morava perto do córrego, parecia ter sido feito para o menino. O padre falava de revelar o corpo, “colocar nosso corpo á mostra para todos verem como em uma banca de peixes”. Isso era pecado! O menino não sabia o que era pecado, mas sabia quais eram eles: avareza, ira, soberba, preguiça, gula, inveja e luxúria. Na cabeça do menino, pecado era aquilo que as pessoas fazem de ruim e escondem. O que ele e os garotos faziam era diferente, era brincadeira. Mas andar com poucas roupas ou nenhuma era pecado, “pecado de quem faz e de quem vê”. A morena então estava pecando. E o menino também! “Vocês sabem o destino dos pecadores? O caldeirão do inferno!Sabem como é o caldeirão do inferno? Ah, meus amigos não queiram saber! Um imenso caldeirão cheio de lodo e óleo fervente, onde estão todos os pecadores sendo puxados pelos pés por demônios no seu fundo que a cada dia mordem mais e mais seus membros. E isso por toda a eternidade!” O menino, como a maioria dos garotos na Igreja, estava quase chorando.
No mesmo dia quando chegou em casa, resolveu dar um jeito na sua morena. Rasgou a carta em mil pedaços, até não poder mais ver qualquer pedaço do corpo da mulher. Jogou tudo num buraco que havia no canto da parede. Na falta de milho, rezou inúmeros padre-nossos ajoelhado em suas bolinhas de gude. No dia seguinte, olhou bem o buraco para ter certeza de que ali estava a prova do crime. Depois da aula foi direto á Igreja se confessar com o padre. O padre pediu que fosse breve, mas já estava desconfiado. O menino contou sobre a morena. O padre queria saber como ele conseguiu ela, o menino contou. A reação do sacerdote foi colérica. O menino já estava chorando antes de terminar a confissão; não queria ficar no caldeirão do inferno. O padre passou a pena: 100 ave-marias e 110 padre-nossos ajoelhado no milho. O menino queria fazer ali mesmo, o padre não deixou. Disse que nesse caso seria em casa, no seu quarto. O menino foi, sabendo que ele e seus amigos ficariam com a bunda assada de tanta chinelada.
Depois de cumprir seu castigo, ficou assustado novamente, mas não saiu de casa. Estava esperando sua mãe chegar com aquele chinelo na mão. Depois de um tempo ela chegou, era tarde. Chegou dizendo que uma amiga sua, mãe de um de seus colegas, descobrira com seu filho cartas de baralho de mulher pelada. O garoto disse que tinha roubado do gabinete do padre. Perguntou se o menino sabia de alguma coisa e ele, confuso, negou, afinal já tinha fugido do caldeirão do inferno e mentira não é um pecado capital.
O padre também negou, mas o caso ficou na boca de todos por muito tempo. Algumas beatas se afastaram do padre depois disso e sempre que passavam por ele olhavam com medo. O menino olhava para o padre como se fosse colega de mais uma de suas artes e o padre olhava para ele como se não soubesse de nada e, por vezes, de quem pedia para não dizer nada. Numa cidade que se comunicava mais por olhares do que por palavras, o olhar do menino para sua coleguinha morena desde então também denunciava algo. Algo que com o tempo se consumou. Se é pecado ou não, o menino não sabia, mas que valia a pena enfrentar o caldeirão do inferno por isso, valia.

Figura

As pessoas me pintam
mas meu semblante
está bem guardado
para mim e somente a mim.
E agradeço ao sempre ao espelho por isso.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Como era verde o meu campo

-Dia brabo, em!
Comentou o senhor ao lado de Aldano, mas ele fingiu não ter ouvido nada. O dia estava ruim mesmo, esse comentário é mais do que óbvio. Afinal, qual dia em um campo de trabalho não é ruim?
Aldano andou á frente, em direção á seu colega Braz. Gostava dele; não era um cara brilhante, mas era um bom ouvinte e Aldano tinha muito o que falar. Tirando isso tinha um otimismo e um entusiasmo infernal.
-E aí, cara? Tudo bem? O sol hoje tá brabo, né?
Fingiu que não ouviu a última parte da fala do colega e começou a falar como se já estivesse impaciente.
-Tá, tá bem sim, Braz. Olha, você pensou naquilo que te disse ontem?
-O quê?
-Aquilo, cara...
Olhava para os lados. Não era fácil alguém se esconder na plantação; a vegetação era rasteira e as plantas maiores eram muito finas e frágeis. A única pessoa por perto era o velho que comentou sobre o dia lá atrás. É um velho, mas vai que ele tem boa audição?
-Aquilo!!
Braz se lembrou da conversa de ontem na cela.
-Ah, aquilo! Sei, sei... Cara, eu acho isso meio perigoso, eu te disse...
O velho se afastara, fora arar a terra no final da canaleta.
-Você prefere ficar aqui?
Braz vai um pouco adiante para colher uma fruta que parece ter nascido antes do esperado, envergando a planta até o chão.
-Mas, pensa bem: você sai daqui, vai viver lá fora como? O mundo muito, cara! Aqui pelo menos a gente tem comida, tem água, tem casa...
Aldano interrompe bruscamente.
-Mas aqui não tem liberdade! Aqui você não pode fazer mais nada, aonde eu quero ir não posso, tenho que ficar aqui arando essas plantas da porra nesse sol fodido! Você acha isso legal?
Braz fica em silêncio; não tem resposta. Aldano se acalma e conta mais sobre seu plano.
-Amanhã, eu vou fazer o esquema: vou me jogar no meio do sorgo e esperar a debulhadora me pegar...
-Cara, isso é perigoso..
-Perigoso nada! Antes de cair no processador eu me agarro na tubulação e espero eles guardarem a debulhadora na garagem. Aí eu saio. Daí em diante é fácil. Ninguém vigia a garagem, sair de lá vai ser mole. Eu preciso saber se você vem comigo, porque aí você vai ter que ser rápido; se não agarrar antes de chegar ao processador você vira carne moída.
-Num sei não...
-Deixa de ser cagão, cara!
Aldano maneira a voz. O velho, lá longe, no fim da canaleta, olha, mas não se assusta; ele conhece o caráter brigão de Aldano, na certa deve estar brigando com o Braz por ter jogado água no seu sapato.
-To te convidando, to te oferecendo a liberdade! Pensa melhor.
Braz olha para o chão. Não está mais animado como antes, isso é claro. O cara é conformista demais, pensa Aldano.
-Tá...
Responde o seu colega depois de um minuto de silêncio, enquanto arranca da canaleta uma enorme lesma atraída pela água de onde saem as plantas. Logo em seguida, joga um elemento higienizador em pó no lugar. Aldano se anima.
-É, pensa um pouco e me dá a resposta na janta, viu? Viu?
-Sim.
Braz não quer ir, mas não saber dizer não. Aldano já se zanga com seu entusiasmo aqui, imagine então com uma declaração aberta de que não quer sair do campo de trabalho. De alguma forma, Braz gosta de estar aqui. Gosta de trabalhar. Ele não pensa no que há lá fora, porque acha que não resta mais nada para ele lá. Não havia muito antes. Aqui não, ele tem um trabalho, ele tem algo para se ocupar. Ele faz bem feito, ele é reconhecido - já foi cinco vezes seguidas o trabalhador do mês, ganhando de presente cinco medalhas de zinco. Além disso, ele está trabalhando por algo maior. Se não fosse pelos alimentos produzidos pelos prisioneiros aqui no campo o país não teria atravessado a crise de fome. As frutas, legumes, peixes e aves que Braz colhe e trata salvou milhares de pessoas e está deixando elas mais saudáveis a cada dia.
Um veículo de metal de forma arredondado que move-se como uma carroça, com um guarda em seu dorso, passa perto da canaleta. Aldano se afasta, mas lentamente, como se estivesse olhando a água das outras plantas. Antes de ir ele dá um tapa nas costas do amigo e diz:
-Te vejo no jantar então!
O dia demorou a passar. Geralmente passa rápido para Braz, sempre ocupado com o pavilhão dos peixes ou com as plantações. Mas a proposta de Aldano o fez pensar. Pensar demais. Braz olhava as canaletas, os tanques dos peixes, as gaiolas das galinhas. Um olhar melancólico. Um olhar de quem se despede. Braz não sabe dizer não, ainda mais para seu amigo - o único -, então é certo que irá fugir amanhã, ou pelo menos tentar.
Jantar. Nunca ele temeu tanto assim a hora do jantar. Depois de tomar o habitual banho, Braz seguia com os outros prisioneiros para o refeitório. Lá podia-se comer parcela do que se produzia ali: frango com vegetais, peixe com ervas, coisas do tipo. Nos primeiros tempos, tudo o que havia de mais podre era servido aqui. Agora não.
Braz vai para sua habitual mesa. Aldano está lá esperando. Está com o nariz roxo, na certa brigou com alguém de novo.
-Então?
Aldano espera pelo sim e o obtém. Um sim nervoso, mas Aldano nem se importa.
-É isso aí, cara! Assim que se fala!
Braz não parece muito entusiasmado, mas recebe um tapão nas costas.
-Quando estivermos lá fora eu vou te levar pra conhecer minha cidade. Não que seja bonita, sabe, mas lá tem um dos melhores puteiros da região. Eu vou te apresentar alguém... Dona Jezebel! Ahahah.
Aldano ria, enquanto mastiga um punhado de arroz integral e milho. Braz apenas observava os grãos de milho que saiam de sua boca caírem na mesa ou no chão.
-Depois vamos ver o mar, cara. Você não sabe quanta falta eu sinto do mar, cara! Você já viu o mar?
-Não...
-Você vai ver, vai se impressionar. É como uma lagoa grande, só que mais escura e mais agitada. Você já viu uma lagoa, né?
-Não...
-Puta merda! Aonde você vivia? Não ter mar dá pra entender, mas não ter lagoa...
Enquanto falava Braz já sofria o desgosto de enfrentar o mundo de novo. Mas dessa vez, pelo menos, ele estaria com o amigo. Aldano, por sua vez, estava já sentindo o sabor da liberdade. Sorria, entre uma garfada e outra. Os presos ao lado estavam desconfiados; esse homem nunca ri! Aldano gostava de Braz. O via como um cachorro ou uma criança. Na cidade, lhe ensinaria o que é viver realmente.
Braz percebia pela primeira vez que a liberdade vinha antes de sua amizade. Isso o deu mais medo. Afinal, Aldano e ele fogem, ficam livres e seu amigo vai querer se esbaldar, esquecendo fácil fácil o companheiro. Mas já estava feito, eles fugiriam amanhã.
A noite demorou a passar para os dois: um, por ansiedade, outro, por medo. Chegou a hora: levantaram-se, vestiram seus uniformes cinzas e foram para o trabalho. Braz carrega consigo, debaixo do uniforme suas preciosas medalhas de zinco. Entraram na fila para a plantação de sorgo. Eles e os demais trabalhadores foram levados por um imenso caminhão achatado que apitava até a plantação. Lá, quatro debulhadoras os esperavam. Era difícil lidar com essa máquina. É necessário que dois homens fiquem na caldeira, enquanto dois controlam na frente seus movimentos. Há o supervisor que vigia o processo todo, passando por todo canto da enorme máquina. Aldano e Braz não eram para estar aqui, mas como há sempre mudanças de última hora o supervisor demorará a perceber isso e até os inspetores descobrirem o erro e chegarem até essa plantação eles já estarão dentro da máquina.
Aldano seguido por seu fiel colega se aproximam da seção de armazenamento. Ambos espiam. Ninguém por perto. Aldano se joga no mar de sorgo. Braz hesita por um instante, mas pula. Rapidamente, se escondem no cereal. Respirar está difícil, mas dá pra aguentar.
A plataforma onde estão começa a inclinar, jogando todo o seu conteúdo em um enorme buraco. Os fugitivos (ou candidatos á fugitivos) descem pelo encanamento da máquina como se fosse um tobogã. Aldano tenta achar alguma fresta ou algum vão na tubulação onde possa se agarrar. Conforme avançam os vão se tornam mais salientes. Aldano se segura em um deles. Braz ainda está tentando. A cabeça está a mil: cidade, puteiro, polícia, etc. Mas a mão agarra alguma coisa. O sorgo ainda está caindo. Já se pode ouvir o processador amassando os grãos e até sentir o seu calor. O vento ainda circula na tubulação. Conseguimos, diz Aldano. Braz só consegue ver na escuridão as luzes da cidade, aquele inferno. Um rapaz sozinho, cheio de fome. Quando sair dessa tubulação, Braz estará sozinho de novo. Não é possível! Não pode acontecer, pensa. Mas agora é tarde para voltar. Talvez não, pensa. Ele ainda pode continuar no campo, ele pode conseguir não sair do campo. É simples. É só seguir a tubulação.
-BRAAZ!...
O sorriso vira grito: seu fiel escudeiro escorregara para a morte. Escorregou não, deve ter se soltado. O merdinha se soltou, pensou Aldano, mas não no habitual tom de reprovação. Era mais um lamento. Não ouviu nem gritos de agonia, o idiota devia estar sorrindo. Na esteira, o laranja dos grãos tornava-se vermelho, uma pasta vermelha. A única coisa que se podia distinguir dessa pasta eram pequenos objetos luminosos. Medalhas de zinco.

A condição

Chegou uma hora que, olhando a vastidão do mar, me desesperei: onde isso acaba?
Inútil, ninguém respondeu. No barco estava somente eu. Até minha sombra parecia ter sumido. Estava só. O desespero aumentou: para onde vou?
Me imaginei eternamente perdido, eternamente á deriva até o momento em que ficaria louco, desidratado ou comido por tubarões. Ou ainda, as três coisas ao mesmo tempo.
Foram horas aflitas. Muitas horas. Meus olhos se perdiam no mar, minha cabeça se perdia naquele barco. Mas o tempo passou. Eu percebi então que poderia navegar esse barco. A direção, no entanto, não sabia, mas poderia tentar achar uma. O jeito era improvisar. Começar a remar até achar algum vestígio de terra no horizonte.
O tempo me acostumou com a idéia. O desespero havia sumido, mas vez ou outra ele me visita. No entanto, o mar e estar sozinho não me assustam mais. Ao invés de pensar nisso, penso: eu não estou sozinho, estou comigo mesmo e não estou no mar, estou no meu barco. Continuo a remar. Algumas vezes parece que consigo enxergar a costa, mas ela some. Não sei se é uma miragem. Pode ser uma lição também. De qualquer maneira, continuou a remar. Há dias ruins, mas há dias bons também. Não reclamo... muito. Afinal, é a vida.
E tem sido assim.