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sábado, 11 de junho de 2011

Sr. Maklof

Piotr estava fulo da vida. A KGB tinha o mandado em missão para Viena. Sua missão era proteger o Sr. Maklof, um homem que parece nunca ter pegado em uma enxada na vida. Ele e seu odioso disfarce de burguês. Primeiro, o pegou na estação, depois o levou até o hotel onde passou a noite toda se revezando com um colega na vigilância do quarto do tal agente secreto.
O objetivo era claro: impedir que o Robert Bird, o americano, não vença Alexei Kameniev na final do Campeonato Mundial de Xadrez. No entanto, Piotr e o outro cara levaram o "senhor burguesinho" ao campeonato e ele não fez nada demais a não ser assistir a partida.
Piotr pensava que ele iria tentar envenenar o americano, mas nem isso. Ele só sentou e ficou ali olhando. Sorte que o americano perdeu a concentração, começou a suar, e perdeu o jogo.
Ivan, o outro agente que fez a segurança, acredita que isso foi tudo um plano para desviar a atenção. Ivan confia cegamente na KGB. O importante para Piotr é que ele irá receber por um trabalho que não teve nenhum tipo de risco.
-Quer saber como eu fiz?
Perguntou o Sr. Maklof, no banco de trás do carro enquanto Piotr dirigia.
-Desculpe, senhor?
-Quer saber como eu fiz?
Piotr estava tentando entender.
-Seu amigo aí não pára de se perguntar o que eu devo ter feito na partida.
Piotr acredita que ele se equivocou: "mas, ele não falou nada até agora".
-Ele não falou, mas está pensando nisso.
Piotr não continuou a conversa. Seu ódio aumentou ainda mais. Mais um burocrata metido á ricaço tentando humilhá-lo.
-... Assim como você está pensando que eu sou um "burocrata metido á ricaço tentando humilha-lo".
-O quê? Como o senhor conseguiu isso?
-Existem pessoas que tem certas capacidades, como mover objetos com a mente ou mesmo penetrar na mente de outras pessoas. Eu sou uma dessas pessoas. O governo tem um departamento especial para elas. O que eu fiz hoje é só um treino. Eu bombardeei a cabeça do americano com informações, atrapalhando-o.
Piotr e Ivan estavam boquiabertos. Mas continuavam um pouco céticos. Maklof percebeu:
-Tá certo. Vou provar para vocês: pensem em um nome qualquer, que não seja de ninguém famoso.
Piotr resolveu fazer um esforço e pensou no nome do velho carpinteiro da aldeia em que foi criado. Ele era judeu e se chamava Marc Rodenko ou Rottenko...
-Ivan, você pensou em Martha Mirischa, sua primeira namorada, enquanto Piotr está tentando se decidir se seu vizinho carpinteiro se chamava Rodenko ou Rottenko.
Era a prova definitiva.
-O senhor pode entrar na mente de qualquer pessoa?
-Sim, por isso nosso objetivo é tão importante. Novos espiões assim como eu podem conseguir informações sem correr muitos riscos. Basta apenas se aproximar da pessoa certa.
-Qualquer informação?
-Basta fazê-la lembrar dela sutilmente. Ás vezes, a simples menção de uma palavra-chave ajuda a fazer a pessoa lembrar de algo importante.
Ivan se angustiava assim que percebeu a real dimensão do que fazia parte:
-Mas nós não deveríamos estar falando disso, não é?
-Não se preocupem. Essa missão também é um teste para aprimorar uma outra capacidade minha: apagar mentes...

sábado, 4 de junho de 2011

Sarita ou um Princípio Maquiavélico que voa

O vilarejo todo estava desconfiado. Havia dias que o demônio Sarita ainda não tinha aparecido. Sua visita mensal estava mais que atrasada. Alguns viam como alívio, outros, no entanto, se preocupavam. De qualquer forma, o ritmo do vilarejo não se alterou. A safra mensal de Sarita já estava preparada. Tudo estava como sempre esteve, mas podia se perceber nos olhares e no silêncio que algo estava por vir.
Numa noite de quinta-feira, na hora da janta, ouviram-se o grunhido agudo do monstro. As crianças foram levadas para seus quartos, junto com suas mães. Os homens saíram de casa, prontos para o que viesse.
Só o que podiam ver no breu da noite era uma silhueta cortando o céu ligeiramente. Depois de alguns minutos, Sarita posou num lugar afastado dos lampiões acesos. O líder da comunidade, Adenar, se destacou na multidão de homens:
-Nós já coletamos sua oferenda, Sarita.
O monstro demorou a responder, mas quando o fez sua voz estava diferente, mais estridente que de costume:
-Não quero sua oferenda. A única coisa que quero é um de vocês. Um de vocês que seja instruído na arte da fundição.
Havia muito tempo que Sarita não exigia um sacrifício, por isso todos se assustaram.
-Você quer... nosso ferreiro?
-Não quero morto, quero ele vivo!
O ferreiro se encontrava ali, na multidão. Se chamava Mergal e era um dos homens mais confiáveis da comunidade. Depois de Adenar, era o segundo no comando. Mergal engoliu seco a determinação do monstro. Mas depois resolveu protestar:
-O que te fiz, Sarita?
A resposta demorou a vir novamente.
-Tenho minhas razões. Ou você vem comigo ou levarei as crianças comigo!
Alguns repreenderam Mergal pelo seu sobressalto. O ferreiro decidiu aceitar o seu destino:
-Então pode me levar!
-Hoje não, amanhã... Quero que o amarrem no antigo altar antes do amanhecer!
Com essa última palavra, Sarita abriu suas asas e começou a voar, saindo da penumbra rapidamente, como se fosse um enorme morcego.
Os homens logo começaram um alvoroço.
-Vocês ouviram o que ele disse! Temos que te dar pra ele!
Adenar aparta a confusão:
-Calma, calma! Podemos pensar em uma maneira de impedir isso.
Mergal, contudo, discorda de seu amigo:
-Não se preocupe, Adenar. Eu estou preparado para isso.
Ao dizer isso, mostrou seu facão preso ao pulso.
-Na primeira oportunidade que tiver matarei a criatura!

Ao final da madrugada, Mergal já se encontrava amarrado em um mastro num antigo altar de pedra no meio da selva. Os primeiros raios de sol estava surgindo entre as montanhas e o coração de Mergal disparara. Olhava para todos os lados esperando Sarita chegar. Ouviu então um bater de asas. Atrás de si, vindo como um míssil, apareceu o monstro. Com suas garras arrancou o homem com mastro e tudo do altar. Enquanto o carregava para seu ninho, Mergal começava a cortar lentamente a corda com o facão escondido em seu braço. Assim que se viu livre apunhalou o monstro na altura da barriga. Nada aconteceu. O animal nem se moveu. O facão, por sua vez, tinha entortado. Mergal começava a recalcular suas chances. Decidiu tentar matá-lo cortando seu pescoço. Subindo lentamente pelas suas costas, o ferreiro atingiu o pescoço da criatura e começou a esfaqueá-lo. Na parte de cima, a dura couraça não permitiu qualquer ferimento, mas a medida que foi descendo com a faca sentiu que algo tinha se rompido. Logo começou a escorrer o sangue negro do monstro e suas asas começaram a perder o compasso. Sarita estava caindo sem soltar ruído algum. Esbarrou com tamanha força em um trecho das enormes montanhas que cercavam o vale que Mergal foi atirado á uma distância considerável. Depois de se recuperar da queda, o ferreiro decidiu conferir se o monstro tinha realmente morrido.
Aproximou-se da pequena cratera que seu corpo tinha aberto das rochas. Enxergava agora nitidamente o animal: seu rosto era como de um pássaro, uma garça, mas com dentes afiadíssimos. Seus olhos eram pequenos e lembravam olhos de bonecas. Seu corpo parecia coberto de escamas, mas lembravam muito as tramas de uma armadura. Suas asas não tinham penas, eram coladas aos longos e finos braços que possuíam no seu final garras pontiagudas. Uma poça de seu sangue se formava próximo da cabeça. O cheiro lembrava uma substância que Mergal conhecia: querosene. Ao ouvir sons vindo de seu interior, Mergal colocou a arma em punho e se preparou para um novo ataque. No entanto, a barriga do monstro abriu-se e de dentro dela saiu um homem. Cambaleando, ele acabou por cair no chão. Olhando o finado monstro, pôs-se a lamentar:
-Não! Não! Não é possível!!
Mergal se aproximou do franzino homem que tinha alguns cortes nas cabeças e nos braços e tentando entender essa cena absurda perguntou:
-Quem és tu e porque saíste desse monstro?
-Seu idiota! Viu o que fez?
-Me responda!
-Eu sou Sarita. Eron Sarita...
-Você é a criatura?
-Não, eu apenas a manipulava. Ela é uma máquina, vê?
-Você criou essa monstruosidade? Mas para que finalidade?
-Eu não a criei. Eu ajudei a construir, mas o verdadeiro criador era o Doutor Celanto. Ele tinha a projetado. Ele que me trouxe para cá!
Mergal avançou e colocou o facão contra o pescoço do homem:
-Me responda agora: por que construíram esse mosntro? Por que nos aterrorizavam?
-E-eu só obedecia as ordens do doutor. Ele se mudou para esse platô há uns anos, trouxe uma caravana de famílias pobres para cá. Ele queria fazer uma experiência...
-Que tipo de experiência? Nos aterrorizar? Se divertir com isso?
-Não, não! Ele queria construir uma sociedade perfeita, pacífica, entende? O mundo lá fora estava ruindo aos poucos em guerra mundial, ele só queria construir um mundo melhor aqui nesse platô, já que ele é distante de tudo. Doutor Celanto era um grande inventor, ele tinha inventado muitas das armas para as guerras, mas sua intenção não era que elas fossem usadas como armas, entende? Os governos se apropriaram delas e... é uma história muito longa. Ele veio pra cá, eu e mais dois rapazes éramos seus ajudantes. No começo, ele tentou criar pequenos vilarejos onde suas máquinas ajudavam na colheita, calculavam os seus rendimentos. Mas com o tempo, um vilarejo ficou mais forte que o outro e começou uma guerra para dominar os demais. O Doutor se desiludiu mais uma vez...
-Eu já ouviu algo parecido... É a lenda da época de ouro!
-Sim, era o seu vilarejo que começou a guerra...
-E esse Doutor... ele era o profeta da montanha?
-Sim, sim! Quando ele viu que seu projeto tinha saído do controle, ele apareceu dizendo ser um profeta e disse que o preço da guerra seria o mosntro que ele tinha solto. Ele construiu esse monstro para convencer vocês a desistirem da guerra. Ele até mandou aqueles dois colegas meus para convencerem os líderes dos vilarejos, mas eles foram linchados. Depois disso, o Doutor achou que a experiência tinha que mudar. Ele achou que a sociedade perfeita é construída com medo e que o fato de existir um monstro que tiraniza as pessoas é o único meio de fazer elas se unirem.
-Mas você fez o vilarejo de Banilla ser destruído!
-Não, o líder deles disse que eu tinha ordenado o suicídio coletivo e eu nunca disse isso! Não tenho culpa se as pessoas se aproveitam da minha existência. Tudo o que eu pedia era mantimentos, uma parte da colheita, para sobreviver.
-E os sacrifícios?
-O Doutor me pediu que eliminasse os dissidentes, os mais agressivos.
-Onde está esse Doutor? Eu quero vê-lo.
-Não pode. Ele morreu há um ano! Desde então eu vivo com o que vocês me dão. No entanto, eu não tenho os conhecimentos dele, não consigo fazer a manutenção do monstro. Por isso eu precisava de algo tipo um mecânico, como você.
-Um ferreiro?
-Sim. Pense bem, você pode ser meu sócio! Você me ajuda a consertar o monstro e ficaremos ricos!
-Não, esse é o fim do seu monstro! Estamos cansados de viver com medo!
-Você não entende. Depois que todos souberem que ele não existe, vai ter guerra de novo. Vocês vão se matar! Veja como seu vilarejo é perfeito: todos unidos, todos valorizam um ao outro, todos felizes...
-Não pode ser feliz com medo!
-E o que vai fazer comigo então?
-Você não merecer ser morto, você é digno de pena! Te levarei para a cidade onde deverá ser preso.
-Mas eles me matarão lá!
-Você vem comigo, não tem escolha...
Eron foi levado á vila, onde foi julgado e condenado á prisão pérpetua. No entanto, um dia a cadeia foi invadida por uma turbe raivosa e ele foi linchado. O monstro foi levado até a vila onde foi exposto como troféu por Mergal e, algum tempo depois, como símbolo da superioridade de seu vilarejo quando este dominou todo o vale. As pequenas vilas que viviam para pagar tributos ao rei Mergal com medo de serem atacadas por seu exército eram muitas. Parece que Mergal tinha aprendido á lição de Celanto.

Ader Rotten ou a Selva do Desentendimento

Os soldados embrenhavam-se na selva. Como toda selva, maravilhava e amendrontava a um só tempo. Alguns soldados se admiravam das cores psicodélicas das plantas e com outras formas de vida nenhum pouco menos bizarras. Mas o que mais se teme é o inimigo, sempre.
De repente um urro estridente quebra a harmonia, como se fosse emitido pelas entranhas da própria floresta. Não, era uma ordem de ataque. Em alguns minutos os inimigos estarão aqui. Diante de tal possibilidade apenas dois soldados ficaram para ver aonde ia terminar a história. O batalhão inteiro correu em direção ao rio de onde aportaram. Alguns oficiais foram atrás com o pretexto de acabar com esse desacato. Só que se podia ouvir era o som que vinha do chão, como se uma poderosa manada estivesse chegando e com ela arrastando toda a floresta.
Bem, o som serviu de incentivo para muitos soldados apressarem seu passo. Já se podia ver o barco, apesar de camuflado podia se reconehcer alguns de seus contornos. A marcha, contudo, se aproximava cada vez mais e já podia se ouvir os gritos de dor dos soldados que ficaram para encarar o inimigo. O oficial encarregado do barco, ao ouvi-los, deu um pulo de sua cadeira e começou a preparar sua saída. Alguns soldados conseguiram subir a bordo. Outros cairam no rio e tentavam subir nadando ao lado do barco. Inútil. A água desse rio tem uma densidade muito grande e sua ingestão é tóxica: num primeiro momento deixa sonolento, depois totalmente paralisado por alguns dias. A última coisa que a maioria deles pensava era voltar á margem para não se afogarem.


Toda a imprensa estava noticiando o acordo que poderia ser firmado hoje entre as liderança terrestres e kavorianas. Afinal, foram mais de 15 anos de guerra por todos os planetas desta galáxia. Onde houvesse colônias humanas ou não. As baixas foram incríveis dos dois lados.
Difícil alguém esquecer como tudo começou: com ataques de kavorianos á novas bases humanas em alguns países habitáveis. Alguns dizem que esse planeta já era dos kavorianos que possuem um exército bem organizado e ótimas estratégias de guerra, apesar de sua aparência assustadora. Um kavoriano lembra muito um réptil terrestre: escamas, dentes, sangue frio, cauda. Além disso conta, com uma armadura impenetrável onde o elmo se confunde com barbatanas e as adagas com as garras. Conseguem regenerar seus membros em poucos dias. Alguns veteranos dizem que só há um meio de matá-los: acertando sua barriga.
De qualquer maneira, um kavoriano não é uma imagem fácil de se digerir quando se pensa que somos a única forma de vida inteligente do universo. Aliás, só achar essa série de planetas habitáveis gerou muitas questões, que iam desde a teologia até a economia.

O fato é que há um mês a confederação terrestre recebeu uma mensagem dos kavorianos. Uma mensagem secreta, direcionada especialmente ao comandante de uma operação no planeta XB2. A operação foi um fracasso e o comandante veio a falecer uma semana antes. O interessante é que o emissário conhecia muito bem a nossa língua. Ele dizia ser um prisioneiro dos kavorianos e que estes planejavam iniciar uma conversação. Não seria a primeira vez que esses astutos alienígenas tentaram nos enganar com falsas informações: nos primeiros anos da guerra, eles aprenderam a retransmitir as ondas de forma caótica e incessante como forma de atrapalhar a comunicação entre os QGs. Mas foi conferido a patente e o número de série do dito prisioneiro e foi confirmado que se tratava de Ader Rotter, um dos tantos soldados que teria sido morto na operação Monção Tropical no planeta XB2 há um ano atrás.
Semanalmente, Rotter continuou a se corresponder com a central de informações da confederação explicando vagamente as condições de sua captura e dos interesses de seus carcereiros. Eles queriam fazer um acordo.
Depois de um mês de negociações, finalmente a confederação decidiu organizar uma conferência secreta com Ader e seu "amo". Uma conferência tensa, onde tanto naves inimigas como confederadas circundaram a órbita de uma lua longínqua. Inicialmente foi uma teleconferência e somente após 4h de negociações ambos marcaram uma reunião futura onde tratariam do acordo. Essa reunião será feita hoje no planeta A-tkama, um local inóspito, mas que conta com uma pequena base de colonização ainda ativa, apesar de não ter mais colonos.
A tensão era intensa, chegando á aflorar nos tropeços de alguns oficiais e no suor constante de outros. Afinal, podia se esperar de tudo desses animais. As lideranças terrestres esperavam na base. Pontualmente ás 14h (horário da lua de Edna), as naves kavorianas chegaram e com elas Ader e seu senhor. Era uma espécie diferente de kavoriano: sua armadura era mais flexível, tirando a rígida prótese no pescoço que o tornava totalmente ereto, diferente dos demais. Parecia realmente um lagarto enorme com pescoceira. Ader o seguia. Estava trajado com uma enorme manta que parecia feita de algas ou uma espécie de esponja marinha. Estava sorridente.
Ader tomou á frente desse pomposo kavoriano e cumprimentou o comandante da nave e o diplomata - chamava-se Gamal Bieh.Em seguida, esse réptil soltou um guincho, o qual Ader traduziu como "saudações". Gamal, curioso e nervoso, perguntou se seria apropriado perguntar como ele se tornou intérprete desse líder kavoriano.
Depois de contar com o consentimento de seu senhor, Ader começou a contar sua história. Ele era um dos soldados que fugiu da horda de kavorianos mas que foi abandonado pelo barco da expedição. De todos que permaneceram no rio, Ader foi o único que conseguiu recobrar a consciência depois que os kavorianos os tiraram de lá. Foi levado para o que seria o acampamento deles. Pensou que seria devorado, mas ao invés disso o general - o líder kavoriano presente ali - o visitou e tentou se comunicar com ele. Seu objetivo era conseguir informações preciosas dos prisioneiros, mas para isso precisaria saber como interagir com ele. Ader foi perdendo o medo e começou a entender o objetivo do general. Primeiro começaram a se comunicar por figuras: desenhando no chão de terra personagens ou lugares. Em um ano, eles já conseguiam se entender por meio de gestos. Ader nunca conseguiria reproduzir, contudo, a linguagem kavoriana uma vez que as cordas vocais deles são radicalmente diferentes das nossas. O jeito foi improvisarem uma espécie de idioma do meio-termo, onde fonemas humanos e grunhidos reptilianos se unem.
A maioria dos homens naquela sala ainda não conseguia entender como duas espécies tão diferentes conseguiam se entender. Ader quando falava do general - seu nome era Zagbar - demonstrava sempre admiração e respeito. Bieh pensava que tinham feito lavagem cerebral nele, mas tinha medo de perguntar, uma vez que o general poderia entender isso.
-Qual o interesse do general nesse acordo?, perguntou o diplomata.
-General Zagbar deseja selar um acordo de trégua entre nossa nação e a dele. Um acordo de trégua que poderá se tornar o fim da guerra. Sua nação já não aguenta mais a guerra. Por causa dela pararam sua colonização e os alimentos estão escasseando.
Todos estavam desconfiados. Era possível que fosse um embuste. Esse seres são maquiavélicos. Bieh queria saber quais eram as nossas garantias.
-Falar em garantia é algo frágil para os kavorianos. Essa situação de guerra ajudou a criar um grupo de militares, uma verdadeira máfia dentro do império kavoriano que não deseja que a guerra termine tão cedo. Mas, General Zagbar assegura que investigações já estão sendo feitas e se selado o acordo estes senhores da guerra serão detidos.
Ainda assim, tudo parecia nebuloso para Bieh e os homens ali presentes. Ader conseguia perceber isso na feição de seu rosto e no clima de tensão. Zagbar pouco fazia além de observar a discussão sentado ao lado de Ader.
-Eu sei que vocês estão pensando que isso é um engano, mas não é! Nós conhecemos pouco esse povo. Eu sei que eles são uma civilização poderosa e criativa como a nossa. Mas eles tem seus defeitos, assim como nós. Não estou mentindo. Nesses dois anos eu conheci a cultura deles, suas realizações, quase tudo. General Zagbar me ensinou tudo isso. Eu pude perceber que eles não são animais, só são diferentes! Isso não é mentira! Eu não fui lobotomizado!
A reação de Ader era inesperada. Bieh pediu licença para conversar com os oficiais. Zagbar, até então impassível, sussurra algo. Ader explica que ele quer falar e começa a traduzir sua mensagem:
-Entendo a preocupação de vocês, ela é completamente compreensível. Vocês temem que quebremos o acordo e mais pessoas sejam mortas. Eu também pensaria a mesma coisa. Chegamos então á um impasse onde ninguém confia em ninguém. Proponho o seguinte: façamos esse acordo. Se algo acontecer em uma semana devolveremos duas colônias suas. Ader conhece minha cultura, sabe que não mentimos. Peço que pensem nisso: uma vez firmada a trégua, ela pode servir como uma prova de que a paz é possível. Esse pode ser um caminho para acabar com a guerra. Não queremos mais a guerra. Ela nos rebaixa aos nossos instintos mais primitivos, creio que isso também aconteça com vocês. Detestamos essa refinação de nossa animalidade. Na minha cultura, guerra significa três coisas: ataque, defesa e auto-destruição. Acho que já passamos das duas primeiras para última há muito tempo.
A lucidez do líder kavoriano surpreendeu por um minuto os representantes terrestres. Bieh agradeceu o conselho do general e chamou alguns oficiais para discutir a proposta. O inimigo mortal parece se demonstrar muito mais preocupado com a paz que nós, confidencia o diplomata. A responsabilidade é muito grande. Esse pode ser um momento histórico. Não podemos desperdiçar momentos históricos. O acordo é fechado.

Trinta anos depois, a confederação não existe mais. Em compensação, há o que ficou conhecido como Império: a união de várias nações humanas e kavorianas que comercializam entre si produtos produzidos nas mais diferentes colônias pelas galáxias. Algo perto de um dialeto universal foi criado, mas ele é muito flexível, varia para cada região. Pode-se perceber o sotaque aqui. Apesar de volta e meia surgir algum conflito entre comerciantes, kavorianos e colonos, as relações agora são de convivência.
No planeta Manah, sede do Império, existe um instituto muito prestigiado que se dedica a conservar as relações entre seres humanos e kavorianos. É o instituto Ader Rotten, administrado pela família Bieh há anos. Ele é composto pela biblioteca do General Zagbar e os documentos reunidos por Ader enquanto viveu entre os kavorianos. Rotten veio a se tornar embaixador, sendo respeitado pelos kavorianos e tido até como santo por muitos. Entretanto, foi assassinado por matadores á mando dos senhores da guerra que tanto ele como Zagbar tentaram prender. O objetivo desse instituto é aprimorar a diplomacia intergaláctica, seja através de imagens, sons ou gestos.
Dentro do acervo do instituto existe um documento muito interessante onde Rotten descreve "o ato de se relacionar com as pessoas como se embrenhar em uma selva, onde tudo é imprevisível. De certa maneira, a selva onde quase morri sempre me vêem á cabeça quando tento me comunicar com alguém. É o medo de ver alguém numa situação parecida com aquela apenas porque dois povos não conseguem se entender que me faz atuar nesse campo".

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Perdidos na Bienal

Bráulio Tavares sempre me surpreendendo. Com boas surpresas, claro!
O danado quase me pegou.

Leiam:
Perdidos na Bienal - Bráulio Tavares

Dia

Acordo.
Leio o jornal e lancho.
Já cumpri minha cota diária de tragédias e calorias.
Vou trabalhar.
Ônibus lotado:
um vislumbre do purgatório.

Trabalho.
Trabalho, trabalho, trabalho.
O café me impede de se tornar um zumbi.
Computadores, papéis, fofocas... não adianta!
Vou deixar meu cérebro no piloto automático.
Chega a hora esperada: a saída.

Ônibus lotado, pra variar.
A casa vazia, meu amor, me espera.
Mas se vinga por ter passado antes no bar:
acaba a luz.
O jantar vai ser comido frio, pelo jeito.
É bom para a anestesiar a fome.

Banho frio, hmm...
Estou quase no sétimo sono.
Do banheiro á cama, sonambulo.
O corredor nunca pareceu tão longo.
O banquinho na frente do meu caminho, no qual bati meu pé, acaba com o momento zen.
Mas não tem problema, é só mandar ele pra puta-que-pariu umas cinco vezes.
Aí, aí está a cama, me chamando para um longo abraço.
O que posso fazer? Recursar o pedido de uma dama?
Durmo.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Afoturismo VIII

Sabe, um dos grandes problemas da humanidade através dos séculos era o trabalho. Não sou um apologista do ócio, não estou falando do trabalho em si, mas das péssimas condições de trabalho que sempre existiram em qualquer profissão, compreende? Por exemplo, um mineiro está submetido á péssimas condições de trabalho, pode morrer com efizema pulmonar com 10 anos de serviço ou em um desabamento. Ninguém quer fazer esse trabalho, mas alguém tem que fazer esse trabalho. E aí como ficamos? Temos que aceitar esse ônus.
Mas no futuro as coisas irão mudar. Péssimas condições de trabalho são coisas que não sabemos o que é há um tempo. As profissões existentes agora não nos oferecem tanto riscos assim. As pessoas podem fazer o quiser, o que não quer dizer que não existam pessoas que façam determinada tarefa só para receber um dinheirinho, não. O que quero dizer é que esse trabalho perigoso e arriscado acabou. Sim, acabou. Se arriscar para quê? Não precisamos mais nos arriscar; as formigas fazem isso para gente. Pode parecer meio ridículo, mas é verdade: formigas. Modifique-a geneticamente e implante um chip em sua cabeça que emita ordens e pronto! Pode parecer meio insensível mandar esses pequenos e inocentes animaizinhos limparem esgotos ou abrirem túneis de exploração com dinamite e morrerem por nós, mas elas aguentam. Afinal, elas foram feitas para isso; tem exoesqueleto, né?

Pecado

Cidade pequena. O centro da cidade, urbanística e simbolicamente, era a Igreja. O padre era quase o prefeito.
O menino não era daqueles levados, mas fazia parte da turma dos levados. Ele e os outros garotos colocavam bombinhas no rabo dos gatos, tentavam levantar a saia das beatas em dia de procissão Coisas do tipo.
O menino levava bronca da mãe e do padre quando era pego. Ás vezes nem tinha feito nada, mas só por estar junto com os garotos já apanhava. Pior era o castigo dado pelo padre: rezar cem padre-nossos e mil ave-marias ajoelhado no milho. O padre já tinha um pote especial com milho para os garotos. Sumir com esse pote era um dos maiores desejos dos garotos.
Um dia seus amigos estavam todos reunidos em torno do mais atentado da turma. Não estavam correndo, jogando bola de gude ou subindo nas árvores. Então deviam estar fazendo algo muito especial. O menino se aproximou e descobriu. Eram cartões de mulheres peladas. A maioria era morena. O cabeça da turma, aquele que achou o baralho inclusive, ficou logo com a loira e a mais peituda. Mas vendeu o resto do baralho. Vendeu não, trocou com os outros por alguma coisa. O menino conseguiu uma por um pote de geléia de jabuticaba da sua mãe. Era uma morena com longos cílios, encostada em uma coluna com seus braços por cima da cabeça deixando seus seios assim completamente á vontade.
Enquanto ninguém via, ele pegava o cartão e admirava a sua morena. Ficava pensando se todas as mulheres eram assim por debaixo do vestido. Passava alguém na rua, escondia. O menino passou a olhar as beatas de outro jeito e passou olhar a menina do outro lado da rua de outro jeito. Era morena também, não tinha os cílios compridos, mas tinha olhos grandes. Aliás, parecia muito com a sua morena. Talvez fosse parente dela.
Apesar do sermão do padre dessa semana ser direcionado ás roupas “ousadas” de uma moça que morava perto do córrego, parecia ter sido feito para o menino. O padre falava de revelar o corpo, “colocar nosso corpo á mostra para todos verem como em uma banca de peixes”. Isso era pecado! O menino não sabia o que era pecado, mas sabia quais eram eles: avareza, ira, soberba, preguiça, gula, inveja e luxúria. Na cabeça do menino, pecado era aquilo que as pessoas fazem de ruim e escondem. O que ele e os garotos faziam era diferente, era brincadeira. Mas andar com poucas roupas ou nenhuma era pecado, “pecado de quem faz e de quem vê”. A morena então estava pecando. E o menino também! “Vocês sabem o destino dos pecadores? O caldeirão do inferno!Sabem como é o caldeirão do inferno? Ah, meus amigos não queiram saber! Um imenso caldeirão cheio de lodo e óleo fervente, onde estão todos os pecadores sendo puxados pelos pés por demônios no seu fundo que a cada dia mordem mais e mais seus membros. E isso por toda a eternidade!” O menino, como a maioria dos garotos na Igreja, estava quase chorando.
No mesmo dia quando chegou em casa, resolveu dar um jeito na sua morena. Rasgou a carta em mil pedaços, até não poder mais ver qualquer pedaço do corpo da mulher. Jogou tudo num buraco que havia no canto da parede. Na falta de milho, rezou inúmeros padre-nossos ajoelhado em suas bolinhas de gude. No dia seguinte, olhou bem o buraco para ter certeza de que ali estava a prova do crime. Depois da aula foi direto á Igreja se confessar com o padre. O padre pediu que fosse breve, mas já estava desconfiado. O menino contou sobre a morena. O padre queria saber como ele conseguiu ela, o menino contou. A reação do sacerdote foi colérica. O menino já estava chorando antes de terminar a confissão; não queria ficar no caldeirão do inferno. O padre passou a pena: 100 ave-marias e 110 padre-nossos ajoelhado no milho. O menino queria fazer ali mesmo, o padre não deixou. Disse que nesse caso seria em casa, no seu quarto. O menino foi, sabendo que ele e seus amigos ficariam com a bunda assada de tanta chinelada.
Depois de cumprir seu castigo, ficou assustado novamente, mas não saiu de casa. Estava esperando sua mãe chegar com aquele chinelo na mão. Depois de um tempo ela chegou, era tarde. Chegou dizendo que uma amiga sua, mãe de um de seus colegas, descobrira com seu filho cartas de baralho de mulher pelada. O garoto disse que tinha roubado do gabinete do padre. Perguntou se o menino sabia de alguma coisa e ele, confuso, negou, afinal já tinha fugido do caldeirão do inferno e mentira não é um pecado capital.
O padre também negou, mas o caso ficou na boca de todos por muito tempo. Algumas beatas se afastaram do padre depois disso e sempre que passavam por ele olhavam com medo. O menino olhava para o padre como se fosse colega de mais uma de suas artes e o padre olhava para ele como se não soubesse de nada e, por vezes, de quem pedia para não dizer nada. Numa cidade que se comunicava mais por olhares do que por palavras, o olhar do menino para sua coleguinha morena desde então também denunciava algo. Algo que com o tempo se consumou. Se é pecado ou não, o menino não sabia, mas que valia a pena enfrentar o caldeirão do inferno por isso, valia.

Figura

As pessoas me pintam
mas meu semblante
está bem guardado
para mim e somente a mim.
E agradeço ao sempre ao espelho por isso.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Como era verde o meu campo

-Dia brabo, em!
Comentou o senhor ao lado de Aldano, mas ele fingiu não ter ouvido nada. O dia estava ruim mesmo, esse comentário é mais do que óbvio. Afinal, qual dia em um campo de trabalho não é ruim?
Aldano andou á frente, em direção á seu colega Braz. Gostava dele; não era um cara brilhante, mas era um bom ouvinte e Aldano tinha muito o que falar. Tirando isso tinha um otimismo e um entusiasmo infernal.
-E aí, cara? Tudo bem? O sol hoje tá brabo, né?
Fingiu que não ouviu a última parte da fala do colega e começou a falar como se já estivesse impaciente.
-Tá, tá bem sim, Braz. Olha, você pensou naquilo que te disse ontem?
-O quê?
-Aquilo, cara...
Olhava para os lados. Não era fácil alguém se esconder na plantação; a vegetação era rasteira e as plantas maiores eram muito finas e frágeis. A única pessoa por perto era o velho que comentou sobre o dia lá atrás. É um velho, mas vai que ele tem boa audição?
-Aquilo!!
Braz se lembrou da conversa de ontem na cela.
-Ah, aquilo! Sei, sei... Cara, eu acho isso meio perigoso, eu te disse...
O velho se afastara, fora arar a terra no final da canaleta.
-Você prefere ficar aqui?
Braz vai um pouco adiante para colher uma fruta que parece ter nascido antes do esperado, envergando a planta até o chão.
-Mas, pensa bem: você sai daqui, vai viver lá fora como? O mundo muito, cara! Aqui pelo menos a gente tem comida, tem água, tem casa...
Aldano interrompe bruscamente.
-Mas aqui não tem liberdade! Aqui você não pode fazer mais nada, aonde eu quero ir não posso, tenho que ficar aqui arando essas plantas da porra nesse sol fodido! Você acha isso legal?
Braz fica em silêncio; não tem resposta. Aldano se acalma e conta mais sobre seu plano.
-Amanhã, eu vou fazer o esquema: vou me jogar no meio do sorgo e esperar a debulhadora me pegar...
-Cara, isso é perigoso..
-Perigoso nada! Antes de cair no processador eu me agarro na tubulação e espero eles guardarem a debulhadora na garagem. Aí eu saio. Daí em diante é fácil. Ninguém vigia a garagem, sair de lá vai ser mole. Eu preciso saber se você vem comigo, porque aí você vai ter que ser rápido; se não agarrar antes de chegar ao processador você vira carne moída.
-Num sei não...
-Deixa de ser cagão, cara!
Aldano maneira a voz. O velho, lá longe, no fim da canaleta, olha, mas não se assusta; ele conhece o caráter brigão de Aldano, na certa deve estar brigando com o Braz por ter jogado água no seu sapato.
-To te convidando, to te oferecendo a liberdade! Pensa melhor.
Braz olha para o chão. Não está mais animado como antes, isso é claro. O cara é conformista demais, pensa Aldano.
-Tá...
Responde o seu colega depois de um minuto de silêncio, enquanto arranca da canaleta uma enorme lesma atraída pela água de onde saem as plantas. Logo em seguida, joga um elemento higienizador em pó no lugar. Aldano se anima.
-É, pensa um pouco e me dá a resposta na janta, viu? Viu?
-Sim.
Braz não quer ir, mas não saber dizer não. Aldano já se zanga com seu entusiasmo aqui, imagine então com uma declaração aberta de que não quer sair do campo de trabalho. De alguma forma, Braz gosta de estar aqui. Gosta de trabalhar. Ele não pensa no que há lá fora, porque acha que não resta mais nada para ele lá. Não havia muito antes. Aqui não, ele tem um trabalho, ele tem algo para se ocupar. Ele faz bem feito, ele é reconhecido - já foi cinco vezes seguidas o trabalhador do mês, ganhando de presente cinco medalhas de zinco. Além disso, ele está trabalhando por algo maior. Se não fosse pelos alimentos produzidos pelos prisioneiros aqui no campo o país não teria atravessado a crise de fome. As frutas, legumes, peixes e aves que Braz colhe e trata salvou milhares de pessoas e está deixando elas mais saudáveis a cada dia.
Um veículo de metal de forma arredondado que move-se como uma carroça, com um guarda em seu dorso, passa perto da canaleta. Aldano se afasta, mas lentamente, como se estivesse olhando a água das outras plantas. Antes de ir ele dá um tapa nas costas do amigo e diz:
-Te vejo no jantar então!
O dia demorou a passar. Geralmente passa rápido para Braz, sempre ocupado com o pavilhão dos peixes ou com as plantações. Mas a proposta de Aldano o fez pensar. Pensar demais. Braz olhava as canaletas, os tanques dos peixes, as gaiolas das galinhas. Um olhar melancólico. Um olhar de quem se despede. Braz não sabe dizer não, ainda mais para seu amigo - o único -, então é certo que irá fugir amanhã, ou pelo menos tentar.
Jantar. Nunca ele temeu tanto assim a hora do jantar. Depois de tomar o habitual banho, Braz seguia com os outros prisioneiros para o refeitório. Lá podia-se comer parcela do que se produzia ali: frango com vegetais, peixe com ervas, coisas do tipo. Nos primeiros tempos, tudo o que havia de mais podre era servido aqui. Agora não.
Braz vai para sua habitual mesa. Aldano está lá esperando. Está com o nariz roxo, na certa brigou com alguém de novo.
-Então?
Aldano espera pelo sim e o obtém. Um sim nervoso, mas Aldano nem se importa.
-É isso aí, cara! Assim que se fala!
Braz não parece muito entusiasmado, mas recebe um tapão nas costas.
-Quando estivermos lá fora eu vou te levar pra conhecer minha cidade. Não que seja bonita, sabe, mas lá tem um dos melhores puteiros da região. Eu vou te apresentar alguém... Dona Jezebel! Ahahah.
Aldano ria, enquanto mastiga um punhado de arroz integral e milho. Braz apenas observava os grãos de milho que saiam de sua boca caírem na mesa ou no chão.
-Depois vamos ver o mar, cara. Você não sabe quanta falta eu sinto do mar, cara! Você já viu o mar?
-Não...
-Você vai ver, vai se impressionar. É como uma lagoa grande, só que mais escura e mais agitada. Você já viu uma lagoa, né?
-Não...
-Puta merda! Aonde você vivia? Não ter mar dá pra entender, mas não ter lagoa...
Enquanto falava Braz já sofria o desgosto de enfrentar o mundo de novo. Mas dessa vez, pelo menos, ele estaria com o amigo. Aldano, por sua vez, estava já sentindo o sabor da liberdade. Sorria, entre uma garfada e outra. Os presos ao lado estavam desconfiados; esse homem nunca ri! Aldano gostava de Braz. O via como um cachorro ou uma criança. Na cidade, lhe ensinaria o que é viver realmente.
Braz percebia pela primeira vez que a liberdade vinha antes de sua amizade. Isso o deu mais medo. Afinal, Aldano e ele fogem, ficam livres e seu amigo vai querer se esbaldar, esquecendo fácil fácil o companheiro. Mas já estava feito, eles fugiriam amanhã.
A noite demorou a passar para os dois: um, por ansiedade, outro, por medo. Chegou a hora: levantaram-se, vestiram seus uniformes cinzas e foram para o trabalho. Braz carrega consigo, debaixo do uniforme suas preciosas medalhas de zinco. Entraram na fila para a plantação de sorgo. Eles e os demais trabalhadores foram levados por um imenso caminhão achatado que apitava até a plantação. Lá, quatro debulhadoras os esperavam. Era difícil lidar com essa máquina. É necessário que dois homens fiquem na caldeira, enquanto dois controlam na frente seus movimentos. Há o supervisor que vigia o processo todo, passando por todo canto da enorme máquina. Aldano e Braz não eram para estar aqui, mas como há sempre mudanças de última hora o supervisor demorará a perceber isso e até os inspetores descobrirem o erro e chegarem até essa plantação eles já estarão dentro da máquina.
Aldano seguido por seu fiel colega se aproximam da seção de armazenamento. Ambos espiam. Ninguém por perto. Aldano se joga no mar de sorgo. Braz hesita por um instante, mas pula. Rapidamente, se escondem no cereal. Respirar está difícil, mas dá pra aguentar.
A plataforma onde estão começa a inclinar, jogando todo o seu conteúdo em um enorme buraco. Os fugitivos (ou candidatos á fugitivos) descem pelo encanamento da máquina como se fosse um tobogã. Aldano tenta achar alguma fresta ou algum vão na tubulação onde possa se agarrar. Conforme avançam os vão se tornam mais salientes. Aldano se segura em um deles. Braz ainda está tentando. A cabeça está a mil: cidade, puteiro, polícia, etc. Mas a mão agarra alguma coisa. O sorgo ainda está caindo. Já se pode ouvir o processador amassando os grãos e até sentir o seu calor. O vento ainda circula na tubulação. Conseguimos, diz Aldano. Braz só consegue ver na escuridão as luzes da cidade, aquele inferno. Um rapaz sozinho, cheio de fome. Quando sair dessa tubulação, Braz estará sozinho de novo. Não é possível! Não pode acontecer, pensa. Mas agora é tarde para voltar. Talvez não, pensa. Ele ainda pode continuar no campo, ele pode conseguir não sair do campo. É simples. É só seguir a tubulação.
-BRAAZ!...
O sorriso vira grito: seu fiel escudeiro escorregara para a morte. Escorregou não, deve ter se soltado. O merdinha se soltou, pensou Aldano, mas não no habitual tom de reprovação. Era mais um lamento. Não ouviu nem gritos de agonia, o idiota devia estar sorrindo. Na esteira, o laranja dos grãos tornava-se vermelho, uma pasta vermelha. A única coisa que se podia distinguir dessa pasta eram pequenos objetos luminosos. Medalhas de zinco.

A condição

Chegou uma hora que, olhando a vastidão do mar, me desesperei: onde isso acaba?
Inútil, ninguém respondeu. No barco estava somente eu. Até minha sombra parecia ter sumido. Estava só. O desespero aumentou: para onde vou?
Me imaginei eternamente perdido, eternamente á deriva até o momento em que ficaria louco, desidratado ou comido por tubarões. Ou ainda, as três coisas ao mesmo tempo.
Foram horas aflitas. Muitas horas. Meus olhos se perdiam no mar, minha cabeça se perdia naquele barco. Mas o tempo passou. Eu percebi então que poderia navegar esse barco. A direção, no entanto, não sabia, mas poderia tentar achar uma. O jeito era improvisar. Começar a remar até achar algum vestígio de terra no horizonte.
O tempo me acostumou com a idéia. O desespero havia sumido, mas vez ou outra ele me visita. No entanto, o mar e estar sozinho não me assustam mais. Ao invés de pensar nisso, penso: eu não estou sozinho, estou comigo mesmo e não estou no mar, estou no meu barco. Continuo a remar. Algumas vezes parece que consigo enxergar a costa, mas ela some. Não sei se é uma miragem. Pode ser uma lição também. De qualquer maneira, continuou a remar. Há dias ruins, mas há dias bons também. Não reclamo... muito. Afinal, é a vida.
E tem sido assim.