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sábado, 4 de junho de 2011

Sarita ou um Princípio Maquiavélico que voa

O vilarejo todo estava desconfiado. Havia dias que o demônio Sarita ainda não tinha aparecido. Sua visita mensal estava mais que atrasada. Alguns viam como alívio, outros, no entanto, se preocupavam. De qualquer forma, o ritmo do vilarejo não se alterou. A safra mensal de Sarita já estava preparada. Tudo estava como sempre esteve, mas podia se perceber nos olhares e no silêncio que algo estava por vir.
Numa noite de quinta-feira, na hora da janta, ouviram-se o grunhido agudo do monstro. As crianças foram levadas para seus quartos, junto com suas mães. Os homens saíram de casa, prontos para o que viesse.
Só o que podiam ver no breu da noite era uma silhueta cortando o céu ligeiramente. Depois de alguns minutos, Sarita posou num lugar afastado dos lampiões acesos. O líder da comunidade, Adenar, se destacou na multidão de homens:
-Nós já coletamos sua oferenda, Sarita.
O monstro demorou a responder, mas quando o fez sua voz estava diferente, mais estridente que de costume:
-Não quero sua oferenda. A única coisa que quero é um de vocês. Um de vocês que seja instruído na arte da fundição.
Havia muito tempo que Sarita não exigia um sacrifício, por isso todos se assustaram.
-Você quer... nosso ferreiro?
-Não quero morto, quero ele vivo!
O ferreiro se encontrava ali, na multidão. Se chamava Mergal e era um dos homens mais confiáveis da comunidade. Depois de Adenar, era o segundo no comando. Mergal engoliu seco a determinação do monstro. Mas depois resolveu protestar:
-O que te fiz, Sarita?
A resposta demorou a vir novamente.
-Tenho minhas razões. Ou você vem comigo ou levarei as crianças comigo!
Alguns repreenderam Mergal pelo seu sobressalto. O ferreiro decidiu aceitar o seu destino:
-Então pode me levar!
-Hoje não, amanhã... Quero que o amarrem no antigo altar antes do amanhecer!
Com essa última palavra, Sarita abriu suas asas e começou a voar, saindo da penumbra rapidamente, como se fosse um enorme morcego.
Os homens logo começaram um alvoroço.
-Vocês ouviram o que ele disse! Temos que te dar pra ele!
Adenar aparta a confusão:
-Calma, calma! Podemos pensar em uma maneira de impedir isso.
Mergal, contudo, discorda de seu amigo:
-Não se preocupe, Adenar. Eu estou preparado para isso.
Ao dizer isso, mostrou seu facão preso ao pulso.
-Na primeira oportunidade que tiver matarei a criatura!

Ao final da madrugada, Mergal já se encontrava amarrado em um mastro num antigo altar de pedra no meio da selva. Os primeiros raios de sol estava surgindo entre as montanhas e o coração de Mergal disparara. Olhava para todos os lados esperando Sarita chegar. Ouviu então um bater de asas. Atrás de si, vindo como um míssil, apareceu o monstro. Com suas garras arrancou o homem com mastro e tudo do altar. Enquanto o carregava para seu ninho, Mergal começava a cortar lentamente a corda com o facão escondido em seu braço. Assim que se viu livre apunhalou o monstro na altura da barriga. Nada aconteceu. O animal nem se moveu. O facão, por sua vez, tinha entortado. Mergal começava a recalcular suas chances. Decidiu tentar matá-lo cortando seu pescoço. Subindo lentamente pelas suas costas, o ferreiro atingiu o pescoço da criatura e começou a esfaqueá-lo. Na parte de cima, a dura couraça não permitiu qualquer ferimento, mas a medida que foi descendo com a faca sentiu que algo tinha se rompido. Logo começou a escorrer o sangue negro do monstro e suas asas começaram a perder o compasso. Sarita estava caindo sem soltar ruído algum. Esbarrou com tamanha força em um trecho das enormes montanhas que cercavam o vale que Mergal foi atirado á uma distância considerável. Depois de se recuperar da queda, o ferreiro decidiu conferir se o monstro tinha realmente morrido.
Aproximou-se da pequena cratera que seu corpo tinha aberto das rochas. Enxergava agora nitidamente o animal: seu rosto era como de um pássaro, uma garça, mas com dentes afiadíssimos. Seus olhos eram pequenos e lembravam olhos de bonecas. Seu corpo parecia coberto de escamas, mas lembravam muito as tramas de uma armadura. Suas asas não tinham penas, eram coladas aos longos e finos braços que possuíam no seu final garras pontiagudas. Uma poça de seu sangue se formava próximo da cabeça. O cheiro lembrava uma substância que Mergal conhecia: querosene. Ao ouvir sons vindo de seu interior, Mergal colocou a arma em punho e se preparou para um novo ataque. No entanto, a barriga do monstro abriu-se e de dentro dela saiu um homem. Cambaleando, ele acabou por cair no chão. Olhando o finado monstro, pôs-se a lamentar:
-Não! Não! Não é possível!!
Mergal se aproximou do franzino homem que tinha alguns cortes nas cabeças e nos braços e tentando entender essa cena absurda perguntou:
-Quem és tu e porque saíste desse monstro?
-Seu idiota! Viu o que fez?
-Me responda!
-Eu sou Sarita. Eron Sarita...
-Você é a criatura?
-Não, eu apenas a manipulava. Ela é uma máquina, vê?
-Você criou essa monstruosidade? Mas para que finalidade?
-Eu não a criei. Eu ajudei a construir, mas o verdadeiro criador era o Doutor Celanto. Ele tinha a projetado. Ele que me trouxe para cá!
Mergal avançou e colocou o facão contra o pescoço do homem:
-Me responda agora: por que construíram esse mosntro? Por que nos aterrorizavam?
-E-eu só obedecia as ordens do doutor. Ele se mudou para esse platô há uns anos, trouxe uma caravana de famílias pobres para cá. Ele queria fazer uma experiência...
-Que tipo de experiência? Nos aterrorizar? Se divertir com isso?
-Não, não! Ele queria construir uma sociedade perfeita, pacífica, entende? O mundo lá fora estava ruindo aos poucos em guerra mundial, ele só queria construir um mundo melhor aqui nesse platô, já que ele é distante de tudo. Doutor Celanto era um grande inventor, ele tinha inventado muitas das armas para as guerras, mas sua intenção não era que elas fossem usadas como armas, entende? Os governos se apropriaram delas e... é uma história muito longa. Ele veio pra cá, eu e mais dois rapazes éramos seus ajudantes. No começo, ele tentou criar pequenos vilarejos onde suas máquinas ajudavam na colheita, calculavam os seus rendimentos. Mas com o tempo, um vilarejo ficou mais forte que o outro e começou uma guerra para dominar os demais. O Doutor se desiludiu mais uma vez...
-Eu já ouviu algo parecido... É a lenda da época de ouro!
-Sim, era o seu vilarejo que começou a guerra...
-E esse Doutor... ele era o profeta da montanha?
-Sim, sim! Quando ele viu que seu projeto tinha saído do controle, ele apareceu dizendo ser um profeta e disse que o preço da guerra seria o mosntro que ele tinha solto. Ele construiu esse monstro para convencer vocês a desistirem da guerra. Ele até mandou aqueles dois colegas meus para convencerem os líderes dos vilarejos, mas eles foram linchados. Depois disso, o Doutor achou que a experiência tinha que mudar. Ele achou que a sociedade perfeita é construída com medo e que o fato de existir um monstro que tiraniza as pessoas é o único meio de fazer elas se unirem.
-Mas você fez o vilarejo de Banilla ser destruído!
-Não, o líder deles disse que eu tinha ordenado o suicídio coletivo e eu nunca disse isso! Não tenho culpa se as pessoas se aproveitam da minha existência. Tudo o que eu pedia era mantimentos, uma parte da colheita, para sobreviver.
-E os sacrifícios?
-O Doutor me pediu que eliminasse os dissidentes, os mais agressivos.
-Onde está esse Doutor? Eu quero vê-lo.
-Não pode. Ele morreu há um ano! Desde então eu vivo com o que vocês me dão. No entanto, eu não tenho os conhecimentos dele, não consigo fazer a manutenção do monstro. Por isso eu precisava de algo tipo um mecânico, como você.
-Um ferreiro?
-Sim. Pense bem, você pode ser meu sócio! Você me ajuda a consertar o monstro e ficaremos ricos!
-Não, esse é o fim do seu monstro! Estamos cansados de viver com medo!
-Você não entende. Depois que todos souberem que ele não existe, vai ter guerra de novo. Vocês vão se matar! Veja como seu vilarejo é perfeito: todos unidos, todos valorizam um ao outro, todos felizes...
-Não pode ser feliz com medo!
-E o que vai fazer comigo então?
-Você não merecer ser morto, você é digno de pena! Te levarei para a cidade onde deverá ser preso.
-Mas eles me matarão lá!
-Você vem comigo, não tem escolha...
Eron foi levado á vila, onde foi julgado e condenado á prisão pérpetua. No entanto, um dia a cadeia foi invadida por uma turbe raivosa e ele foi linchado. O monstro foi levado até a vila onde foi exposto como troféu por Mergal e, algum tempo depois, como símbolo da superioridade de seu vilarejo quando este dominou todo o vale. As pequenas vilas que viviam para pagar tributos ao rei Mergal com medo de serem atacadas por seu exército eram muitas. Parece que Mergal tinha aprendido á lição de Celanto.

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