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quarta-feira, 23 de junho de 2010

O Fim do Brasil

Havia alguns minutos que o sarau de Dona Emiliana Queiroz Barros tinha acabado. Como é de costume. as senhoras se recolhem á sala de jantar para conversar sobre as novidades da cidade, enquanto seus maridos continuam na sala discutindo política e negócios, dentre outras coisas.

O Barão de Jeremoabo era deputado federal e um dos primeiros membros do Partido Conservador em Taubaté, fato aliás do qual muito se orgulhava. No entanto, desde que o Imperador montara o Gabinete da Conciliação, constituído em sua maioria dos setores liberais, as reclamações sobre a política da Corte são frequentes, para desgosto de seus amigos que já as sabiam de cor. Por isso quando o Barão perguntou se eles sabiam qual foi a última mancada do ministro Lafayette todos franziram a testa.

-Pois saibam que esse fanfarrão teve a coragem de afirmar que chegou no Ministério cavalgando em um livro de Direito! Vejam só! Então o sr. Lafayette é o único homem que se fez sozinho! Então ele não teve a ajuda do ministro Sinimbu! Vejam só. Eles pensam que nós somos imbecis para cair numa patota dessa…

-Não se preocupe, caro Barão. Ministérios vem e vão. Aposto que na próxima década o gabinete será totalmente conservador, disse o Marquês de Água Branca.

-De fato o será, o Marquês de Paraná me assegurou. Mas o que me deixa preocupado é a arrogância destes “doutorzinhos”! Não será muito difícil que eles façam uma presepada no governo e sobre ao gabinete que vier o mérito de gestar o problema!

-Ora, Barão, acredito que a maior besteira que eventualmente possam fazer serão se embriagar-se em bailes ou serem pegos em rodas de capoeira. Não poderão fazer besteiras maiores. Veja bem: Abolicionismo? Sabemos que a maioria deles tem escravos e mesmo os que não os possuem na certa tem medo de perder o apoio dos demais fazendeiros.Republicanismo? Além da capital de São Paulo e dos becos do Rio onde mais se ouve falar em República? Meu caro, mesmo todos os republicanos juntos não poderiam fazer um levante em um município sequer! Por isso, meu amigo, fique tranquilo, não há muito com o que se preocupar vindo destes homens.

-Assim espero, caro Marquês. Assim espero…

-Não dê motivos para perder a pouca juventude que ainda lhe resta, amigo, com os caminhos da política… (apontando para sua xícara de café, apresenta sua conclusão para o amigo) Essa xícara aqui tem sustentado o Império á tantos anos, como bens sabe, e o Império não é louco de não protegê-la.

Ao Comendador Queiroz Barros, que assistia a tudo calado, veio uma idéia.

-Meus amigos, diante da conversa que vocês dois travavam sobre os rumos da política eu tive, digamos assim, um desvario, um sonho.

Uma breve pausa para aumentar o interesse dos amigos – o Comendador era um homem muito afoito á gestos teatrais, aliás, á sua paixão pelo teatro sobrepunha-se seu amor pela literatura.

-Imaginei o seguinte: e se um dia o café desaparecer de todas as lavouras não só do Vale como de todo o Brasil?

Nova pausa. Tanto o Marquês como o Barão não entenderam a proposição do Comendador.

-Desaparecer como? – pergunta o Marquês.

-Ora, desaparecer! Como se fosse magia, ao amanhecer de um determinado dia os encarnados brotos do cafeeiro evaporaram. Não só em São Paulo, mas em todo o país. Nunca mais veríamos novamente um grão de café que seja.

O Barão de Jeremoavo, amigo a mais tempo do Comendador que o Marquês e por isso mais ciente do caráter teatral do seu amigo, já entenderá a proposta de seu amigo.

-O que o senhor Comendador está nos sugerindo é um exercício de imaginação, estou certo?

-Claro, Barão. Respondeu, satisfeito pelo amigo ter entendido sua intenção.

-Ora, um exercício de fantasia, isso sim. Desaparecer com todo o café do país sem nenhum motivo natural, sem causa aparente, é uma elocubração muito abstrata! – Disse o Marquês, homem de negócios, que não conseguia entender o ponto do Comendador ainda.

-E o que seria a imaginação, meu caro Marquês, se não uma elocubração abstrata? A imaginação, meu amigo, é isso e muito mais. É dela que se trata a Literatura , bem como toda a Arte. E digo mais: ela é um dos propulsores do avanço de nossa civilização. Sim, tomemos por exemplo, a invenção das locomotivas: uma máquina que se movimenta com vapor não lhe parece algo meio… não-natural?No entanto, a locomotiva existe e está aí, a carregar sacas e sacas de café. E se o inventor delas não tivesse imaginado uma máquina que não fosse movimentada por cavalos simplesmente por parecer algo absurdo?

-Mesmo assim, carbonário colega, a imaginação nesse caso serviu a um propósito: a melhorar a locomoção das pessoas. Qual seria o propósito em extinguir o café do mundo? Não vejo nenhum interesse prático para isso, a não ser para os radicais anti-patrióticos…

-O propósito aqui seria simplesmente se divertir. Ora, imaginemos o que aconteceria com o país se isso viesse de fato a ocorrer. Além disso, podemos até refletir um pouco, criar maneiras de nos precaver a tal acontecimento – que Deus queira nunca aconteça!

-Marquês, – fala o barão, com a mão sobre o seu braço – nosso amigo, na verdade, está tentando avaliar a sua imaginação.

-Ora, não precisa ser muito criativo, para prever o que aconteceria: seria o fim do Brasil! E não precisaria de muito; se o café sumisse somente no Vale já seria o bastante para tal desastre. O que mais esse país produz além do café? Nada! A cana está em baixa, o algodão, com o final da guerra nas Treze Colônias, desvalorizou-se, o tabaco e o cacau são produtos secundários.

-Só por não termos mais produto de exportação estaríamos liquidados, caro Marquês? – pergunta o Barão, com aquele olhar de quem está avaliando os colegas, mesmo olhar do Comendador Queiroz Barros.

-Sr. Barão, o que faz uma nação é a sua economia. Não existe nação sem economia, uma nação que não se sustente não é nação, é um entreposto, uma colônia. Sem o café voltaríamos a ser colônia, dessa vez da Inglaterra. E não como antes, não senhor, dessa vez seria muito pior, porque esses anos todos sob o encargo da Metrópole tínhamos produtos valiosos; sem o café, não teríamos nada! Nos tornaríamos como uma colônia africana, como a mais pobre colônia africana, como um Congo Belga!

O Barão ouvia a tudo olhando para sua xícara, enquanto alisava a ponta dos longos bigodes, costume que se tornara mania desde que deixara o crescer. Ao fim da explanação do Marquês, o Barão começaria a sua. Como de hábito - antes de cada discurso no Parlamento o fazia – abre sua fala com um pigarro.

-Pois eu discordo do senhor, Marquês. Eu penso que uma nação é mais que o que ela produz e o que ela vende. Uma nação é feita pela moral de seus homens, pois sem moral estaríamos nus fazendo pajelança pelo mato. É a moral que nos movimenta e nos faz ser civilizados, cada vez mais civilizados. Infelizmente nossa nação não é totalmente civilizada ainda, graças ás populações escravas e nativas que a habita. Nesses anos todos trouxemos um número considerável de escravos africanos para nossas terras, de tal maneira que temos aqui em Taubaté mais de dois terços de escravos no total de nossa população. Imaginem os senhores o que aconteceria se eles ficassem sem trabalho. Sem lavoura, no que trabalhariam todos eles: Em afazeres domésticos? Nada disso, meu bom Marquês! Seríamos forçados a assinar a Abolição! Teríamos uma população mestiça… A não ser que o Visconde de Taunay continue com seu excelente trabalho de recrutar imigrantes europeus para nosso país, que agora seriam dirigidos ás cidades, ao comércio.

Pausa para um pequeno gole de café.

-E, além do mais, – retorna o Barão – temos que considerar os riscos de uma guerra civil! Pois vejam bem: toda essa população escrava tentaria fugir do jugo do fazendeiro, agora que não há motivos para estarem atrelados á terra e aí começariam levantes, tais como aqueles ensaiados pelos negros em 1842! Lembram-se do medo? Não só guerras com escravos, mas guerras com a oposição também!! Afinal, os radicais voltariam, os gabinetes da Conciliação se dissolveriam em ataques ferinos, em mortes e atentado. O Brasil se tornaria um novo Haiti ou uma nova França após a queda da Bastilha, ou ambos!

O Marquês começou a falar, dessa vez discordando do ponto de vista do ilustre colega sobre a alma das nações. O Comendador Queiroz Barros se divertia em ver os dois discutindo. Agora ficava nítido a posição de cada um deles: o Marquês de Água Branca era um homem de negócios, enxergava os problemas pelo prisma da contabilidade, era muito prático, sempre o foi. Foi assim que ascendeu á condição de fazendeiro, pois, até onde Barros sabe, ele era filho de vendeiros, mas ficou rico investindo em mulas, vendas e depois em terras. O Barão de Jeremoavo era um aristocrata, um estadista, pensava, bebia, comia e exalava política. Seu pai era um tremendo estadista, amigo íntimo do Visconde de Itaboraí e de Vossa Majestade. O Barão conseguia seus projetos na Corte através de muita e muita negociação, proferindo longos discursos com os já característicos pigarros.

O Comendador estava a assistindo a um debate entre dois homens muito diferentes, defendendo suas visões como verdadeiros filósofos, e sentia um certo gosto nisso. Na certa porque o Comendador é, antes de tudo, um intelectual. Formado em Direito, mas nunca exercera a função; herdara as terras do pai, mas nunca entendeu muito bem sobre as técnicas usadas na lavoura. Ao contrário, o Comendador era um bacharel da Filosofia e um fazendeiro literário. Por isso ele se ocupava muito pensando em historietas e em debates. Ele gostava de provocações e de soluções criativas. Na sua casa não é raro chamar seus escravos e agregados e propor-lhes algum problema matemático ou alguma anedota filosófica, como o dilema de Zenão. Ele gosta de fazer isso.

-E o que você acha, Comendador? O que acha que aconteceria?

O Comendador então se prepara.

-Bem, Marquês, acho que primeiramente todos tentariam explicar o que aconteceu. Seriam chamados milhares e milhares de cientistas de todo o mundo para solucionarem o dilema e então, depois de alguns meses uns chegariam a conclusão de que o café evaporara através dos gases expelidos pelas fábricas inglesas na atmosfera e outros deque se trata de um raro caso de esterilização que acontece nas lavouras do mundo inteiro a cada 100 anos.

-Ora, pensei que nesse seu hipotético mundo sem café não existiria explicações científicas para tal “exercício de imaginação”!, comenta entre a ironia e a curiosidade o Marquês.

-Não, meu caro colega. Toda história, por mais fantástica que seja, tem que conservar uma centelha de realidade para ser crível, meu amigo.

-Então o que fez o café desaparecer? Os gases ou a esterilização?

-Nenhum dos dois, meu amigo. Essas são apenas afirmações hipotéticas de cientistas, que como nós sabemos são falhas até que se prove o que realmente aconteceu. O caso é que o mistério sobre o café deve ser mantido. Afinal, se esse é um episódio fantástico, como todo bom episódio fantástico, deve contar com o mistério, o inexplicável, pois isto o torna atraente, isto prende o leitor!

-Muito bem, Comendador. E o que acontece com a economia, ao seu ver?

-Bem, acho que haveria um caos na economia. Como o Marquês bem lembrou, nossas exportações são baixas frente ao mercado internacional. O governo teria que investir em algo mais tangível. É claro, depois de muita balbúrdia. Acho que aconteceria sim alguns levantes, mas que seriam facilmente controlados. Os republicanos conseguiriam redirecionar o povo com sua falácia, é claro, ameaçando a Monarquia. No entanto, diante de tanta miséria, eles se uniriam ao Imperador para reconstruir o país novamente. Afinal, eles também querem o poder. Surgiria uma conciliação entre os republicanos e os monarquistas. Os levantes seriam reprimidos mais uma vez, como em 1842…

-E em que consistiria nossa economia?

-Na indústria! O Imperador tentaria algo mais tangível, como disse, e apoiaria a entrada de mais indústrias estrangeiras, além de diminuir o imposto industrial. Teríamos mais Mauás e Ottonis. Os escravos e imigrantes seriam redirecionados á indústria, sendo os primeiros libertos, uma vez que a escravidão não poderia imperar nesse suposto status quo. Em pouco tempo o Brasil se industrializaria, conseguindo se reerguer da grande crise, tornando-se uma Inglaterra dos trópicos.

O Marquês ri, enquanto o Barão ainda tenta digerir o fato da conciliação entre republicanos e o Império.

-Então a indústria nos salvaria? Francamente, senhor Comendador, isso não é ficção é humorismo! No seu mundo hipotético o fim do café ajudaria o país a se tornar rico, uma “nova Inglaterra”, regenerando nossa população no trabalho. Nem Thomas Morus poderia criar tamanha sandice! Com todo respeito, senhor Comendador, de crível sua suposição não possui nada!

-Ora, é uma possibilidade! Se o senhor vivesse na Idade Média diria que máquinas que imprimem letras ou veículos que se movimentam graças á potência de uma fornalha seriam verossíveis?

-Claro que não, mas dizer que o Brasil se desenvolveria sem o café é ir longe demais, Comendador. Nenhum alucinado profeta medieval seria capaz de enunciar tal coisa.

-Bem, gostaria de lembrar que é apenas um exercício de imaginação. Em se tratando de imaginação tudo é possível.

-Ainda bem que é só isso! Imaginem se isso realmente acontecesse! Nem sei o que faria! – disse o Barão entrando de novo na conversa, após acabar com sua xícara.

-Fique tranquilo, Barão. Só nós conseguimos plantar o café me lavoura, nenhum outro país o faz tão bem e não o fará por séculos! Deixemos para nos preocupar com o fim do café e o consequente fim do Brasil daqui á cem anos, portanto.

Fechando assim sua fala, o Marquês pegou sua xícara, abandonada no início da conversa, mais uma vez, dando cabo de seu conteúdo. O Comendador Queiroz Barros, no entanto, se maravilhara com sua criação, seu Brasil industrial e gigantesco enquanto retomava, como o Marquês, sua xícara. Já chegava a imaginar as fantásticas máquinas que cruzariam nossos ares e mares, via-se como um Jules Verne provinciano, a engendrá-los em pensamento. Deleitava-se com suas criações mais que com o próprio café, que chegava ao fim.

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