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sábado, 26 de junho de 2010

Entre dois mal ou a segunda viagem dos Acuntsu

Apinaã era bravo guerreiro, homem forte e de atitude. Mas desde que voltara do cativeiro, Apinaã mudou muito. Não olhava mais com o mesmo olhar os outros índios da taba. Era um olhar diferente. Ninguém sabia porque.
Os Acuntsu estavam passando por um momento delicado. Depois que conheceram os caraíbas tudo mudou. Esses caraíbas não eram como os anteriores, com quem eles negociavam quinquilharias. Esses caraíbas eram piores: queriam que sua tribo se ajoelha-se para eles, que a tribo usasse as roupas deles, que a tribo obedecesse ao chefe deles, o demônio caraíba.
Os Acuntsu eram grandes guerreiros no passado, lutaram bravamente contra a confederação dos barés anos antes. Eram uma das únicas tribos que se recusava a se unir á confederação. No entanto, os caraíbas tem armas muito potentes. Seus barcos feitos de metal, cuspindo fumaça, não sentem o peso das flechas e dos tiros de carabinas. Suas armas possuem mais balas que as carabinas e espingardas. Nas batalhas anteriores tanto os Acuntsu como os seus "irmãos", os Kadiwéu, foram massacrados.
Apinaã foi um dos que lutaram ao lado dos "irmãos" perto da foz do rio Jari. Ele matou muitos caraíbas, mas foi capturado. Ficou preso em uma jaula por dias. Da jaula ele podia ver os caraíbas surrarem seus amigos e "irmãos", quase todos os dias. Apinaã ficou com vergonha. Fico com vergonha de seu povo, por ser tão fraco, por não responder á altura.
Depois de duas semanas Apinaã foi solto. Os caraíbas pediram para que ele dissese á sua tribo que eles chegariam na aldeia em cinco dias. Era para eles escolherem: ou se rendem ou lutam. Apinaã agora estava mais envergonhado ainda: o destino dos grandes guerreiros é ser morto em combate, ele, por outro lado, foi preso e agora solto como um simples menino de recados. Apinaã sentia o peso da vergonha nas costas, por isso andava envergado agora.
Quando chegou a taba, disse que queria falar com o velho Pindarô. Todos ficaram surpresos com sua volta. Mas Apinaã não queria falar nada com eles, seus olhares só aumentariam mais ainda sua vergonha. O velho Pindarô chegou.
-O que foi, meu filho?
-Pindarô, os caraíbas me soltaram pra falar com você que em cinco dias eles chegam aqui. Eles disseram pra gente se render ou lutar.
Pindarô pensa na notícia e de pronto responde:
-Que bicho ignorante esses caraíbas! Pensam que nós vamo nos render! Essa terra foi nos dada por Kiantô, eles ganharam a parte deles e querem a parte de todo mundo. Se os barés esqueceram disso vamo lembrar á eles. Vamos continuar lutando!
Os curiosos ao redor, eram muitos, se entusiasmaram. Mas um perguntou:
-Pindarô, e como nós faz pra lutar com eles? Eles tem mais armas que nós e os barcos deles são fortes como couro de jacaré! Nós temos pouca gente pra lutar, pouca carabina pra atirar...
-Adjnew, não se preocupe. Kiantô nos ajudará.
Pindarô parou um pouco pra pensar, enquanto pensava remoia nos dentes a erva que tinha comido para curar a dor na garganta. Depois de pensar e ruminar, falou:
-Karidjé e Techua, vocês vão escolher mais 3 home pra ir com vocês descer o rio. Vocês vão derrubar árvores no rio pra atrasar eles.
-Sim, Pindarô.
-Nós vamo pensar no que fazer enquanto isso...
Apinaã acompanhava tudo cabisbaixo,olhando com o canto do olho. Com o canto do olho ele também podia ver o pessoal em volta olhando para ele, com surpresa e com desconfiança.
-Apinaã, meu filho, vamo conversar.
Pindarô pegou Apinaã pelo braço e levou até sua oca. A oca de Pindarô era grande, tinha muitas redes. Sua mulher tava no chão cozinhando um cauim pra melhorar sua dor na barriga. Sua filha tava balançando em uma das redes.Era índia bonita ela.Chamava Mani e tinha olhos bonitos de quem tem curiosidade e simpatia pela vida. Ela olhava para Apinaã com um olhar desconfiado. Apinaã se surpreendeu a ver que ela estava diferente, com uma trança colorida, sinal de que iria se casar em breve.Mas logo o olhar dos dois se chocou; ele, envergonhado, desviou, ela, sapeca, achou graça.
-Mani, por favor sai um pouquinho pra eu falar com o moço.
Ela então desceu da rede, com o corpo mole, e saiu da oca.
-Eu pedi pra ela sair, porque tenho medo dela se assustar com as coisas que nós vamo falar.
-Que coisa, Pindarô?
-Dos caraíbas, meu filho. Ela tem medo deles. Ela nunca viu, mas acha que eles tem unha de tamanduá e corpo de onça.
Pindarô cospe a ervinha que tava no canto da bochecha.
-Apinaã, tu ficou preso na casa deles?
-Fiquei,Pindarô.
-E como é que é? A casa é muito grande? Tem muita arma?
-Era duas vezes mais larga que tua oca. Tinha umas arapuca onde nós ficava preso. Ficava dois caraíba vigiando a gente e quando o caraíba chefe saia, eles pegava um de nós da arapuca pra fazer maldade.
-Bicho ruim esses caraíba!
-Mas eles tinha muitas armas. As carabinas deles eram grandes, tinham também uns trabucos mais leves que levam na cintura.
-Garrucha?
-Sim, mas sem pólvora.
Chegou a ver o barco deles? Se tinha muito ou um só?
-Num vi, Pindarô. Eles me soltaram no meio do mato de noite.
-É... Não se preocupe, Apinaã. Nós ficamos felizes por você ter voltado. E tu lutará ao lado agora de sua família.
-Sim, Pindarô.
Os dois pararam de falar. A mulher de Pindarô deu uma cuia com o cauim pro velho e, pra não fazer desfeita, ofereceu uma tigela de açaí pra Apinaã. Os dois homens pensavam longe agora. Enquanto Pindarô tava preocupado em como arrumar a aldeia pra atacar os caraíbas, Apinaã estava certo de que eles não tinham chance nenhuma. Apinaã tava lamentando já a morte de todo mundo, principalmente a sua. A guerra ia ser um massacre. Ele tinha visto a guerra no Jari. Os caraíbas tinham carabinas que cuspiam pra mais de mil tiros de uma vez só. Eles nem precisavam estar perto pra atirar. Aquela, por exemplo, estava presa na copa das árvores, atirando pra baixo.
O resto da tarde, Apinaã andou pensativo, sentado perto da oca do velho. Foi até a beira do rio, pedir á Kiantô, a cobra das costas de arco-íris, para ajudá-los. Mas Apinaã estava duvidando de Kiantô. Nunca vira ela e ela não impediu a morte dos seus "irmãos". Pra ele Kiantô tava era em outra braçada do rio, bem longe dali.
Mas enquanto olhava o rio Apinaã teve idéia. Ele sabia de quem morava por perto.
Quando Kiantô trouxe os Acunstu para essa beirada do rio,advertiu que ali perto morava Ururã, o pai dos jacarés. Ururã era um jacaré gigante, dos olhos vermelhos, que de tão velho o couro tinha virado pedra o que fazia ele impossível de ser morto.
Ururã se alimenta de tudo quanto é bicho, até de seus filhos, mas ele tem preferência pelas mulher virgem e pelas crianças. Ao contrário de Kiantô, Ururã sempre apareceu nessas paragens, pelo menos desde que Apinaã se entende por gente.
Vez ou outra as crianças que vão brincar na beira do rio são engolidas por ele. Não só aqui na taba, como nas tribos rio abaixo. Os Kadiwéu tentaram matar ele uma vez, depois dele ter comido a filha do pajé. Mas não deu em nada. Os cinco guerreiro que foram atrás dele voltaram boiando pelo rio tudo despedaçado.
Apinaã teve idéia. Pedir ajuda de Ururã, afinal, que ele saiba, ele odeia os caraíbas tanto quanto eles.
Chegando o final da tarde, Apinaã pegou uma canoa e disse aos outros que ia pescar. Subiu o rio. Quando chegou na parte do rio onde el vira dois, Apinaã pegou o caminho pra toca do Ururã. Era parte do rio onde a mata se fechava mais, parecia que aos pouco o teto das árvore ia cair no rio. Chegou num banco de areia, chamou por Ururã.
-Nunca vi macaco mais burro que tu, disse uma voz cavernosa vinda do canto do rio mais á frente.
Apinaã olhou bem e percebeu que o tronco caído mais á frente era o próprio Ururã.
-Num sou macaco, sou homem!
-Homem é macaco pelado e sem rabo. Tem o mesmo gosto que macaco. Mas quando é filhote ou é fêmea e num deflorou o gosto é diferente...
O monstro abrira os olhos, os olhos vermelho. Apinaã tentava criar coragem pra encarar o bicho. Mantinha a carabina perto da mão, mas sabendo que tiro nenhum ia fazer efeito.
-Eu vim aqui pra fazer acordo com você.
-Ururã num faz acordo.
-Ururã também não gosta dos caraíbas.
-Hm... Caraíba, bicho feio. Com gosto de pus...
-Mas nós também não gostamos deles.
-Ninguem gostar de caraíba, só eles mesmos.
-Então... Ururã pode se juntar a nós pra acabar com caraíba.
Nessa hora saiu aquele bramido, que parece que trovão dentro da barriga do bicho. Mas não era fome não, era riso.
-Eu não tenho que me preocupar com caraíba não,macaco pelado. Eles pode tentar me achar, mas nunca vão me matar. É pena ter menos gente pra comer, mas o que importa é que vou continuar andando pelo rio, comendo quem eu quiser.
Apinaã temia por sua vida: se não conseguisse o acordo é certo que o bicho ia engolir ele de uma bocada só.Então ele se desesperou:
-Ururã e se tu ganhar 5 virgens?
O monstro foi se aproximando lentamente do guerreiro, com interesse nos olhos.
-Hmm... faz tempo que Ururã não come virgem, parece que os caraíbas espantaram elas. Se Ururã te ajudar tua tribo vai ter que dar 5 virgens pra ele e 5 filhotes. E uma delas tem que ser filha do chefe!
Apinaã concorda.
-Quando chegar os caraíbas?
-Daqui a dois dias.
-Ururã vai tá lá. Mas depois que matar os caraíbas vocês vão ter que entregar a comida de Ururã. Deixa elas na beira do rio que eu venho pegar. Num se esquece, macaco pelado. Se num trazer elas, vocês nunca vão poder nadar no rio de novo que Ururã vai caçar vocês pra sempre.
Apinaã ouve atentamente. Ururã, lentamente volta para o canto em que estava. Apinaã pega sua canoa e sai rio abaixo. Enquanto vai descendo o rio, a tarde vai caindo, refletindo as cores do sol nas águas barrentas. Na cabeça, Apinaã está meio confuso. Afinal, Apinaã acabou de condenar 10 pessoas de sua tribo. Mas, pensa ele, pelo menos o resto da tribo vai continuar vivo. Enquanto rema, Apinaã tenta se convencer de que salvou toda a tribo.

(CONTINUA...)

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