(plágio é crime:Lei n. 9.610/98. Se quiser reproduzir em algum lugar esses textos, não se esqueça dos créditos.)
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domingo, 27 de junho de 2010
Meu projeto
Esse conto faz parte de um projeto maior sobre a Amazônia. Na realidade comecei a criá-lo antes mesmo de vir para Manaus. Foi na metade do ano passado. A inspiração veio de diferentes lugares e tempos: em primeiro lugar, o curso de História da América Latina - estávamos discutindo então a idéia de civilização e bárbarie, enquanto estudávamos as independências latino-americanas, mais especificamente o caso argentino e brasileiro. Uniu-se á esse tema que muito me interessa os filmes Flyboys (adoro combates áereos e esse filme me pareceu o mais fiel até agora ao estilo) e Up-Altas Aventuras (achei interessantísimo a criatividade do filme e como ele aproveita esse ideal do aventureiro). E, finalmente, temos meu próprio ideal de Amazônia, que começou a ser revisto depois de entrar em contato com um pouco da história de região - principalmente no que tange á Ajuricaba, as icamiabas, O Mundo Perdido de Conan Doyle e etc.
Mas em que consiste o projeto? Como eu não quero estragar a surpresa, digamos que seja uma história sobre aventureiros (principalmente aviadores)na indomável Amazônia em um passado meio steamer contra piratas, zepelins, monstros e muito mais.
O que conto aí embaixo, dos Acunstu, é uma pequena parte dele, na verdade,não tem qualquer ligação com o enredo principal. Mas prometo que começarei,ou tentarei, publicar aqui algumas partes do roteiro para dar um gostinho para vocês, meus leitores imaginários.
sábado, 26 de junho de 2010
Entre dois mal ou a segunda viagem dos Acuntsu
Os Acuntsu estavam passando por um momento delicado. Depois que conheceram os caraíbas tudo mudou. Esses caraíbas não eram como os anteriores, com quem eles negociavam quinquilharias. Esses caraíbas eram piores: queriam que sua tribo se ajoelha-se para eles, que a tribo usasse as roupas deles, que a tribo obedecesse ao chefe deles, o demônio caraíba.
Os Acuntsu eram grandes guerreiros no passado, lutaram bravamente contra a confederação dos barés anos antes. Eram uma das únicas tribos que se recusava a se unir á confederação. No entanto, os caraíbas tem armas muito potentes. Seus barcos feitos de metal, cuspindo fumaça, não sentem o peso das flechas e dos tiros de carabinas. Suas armas possuem mais balas que as carabinas e espingardas. Nas batalhas anteriores tanto os Acuntsu como os seus "irmãos", os Kadiwéu, foram massacrados.
Apinaã foi um dos que lutaram ao lado dos "irmãos" perto da foz do rio Jari. Ele matou muitos caraíbas, mas foi capturado. Ficou preso em uma jaula por dias. Da jaula ele podia ver os caraíbas surrarem seus amigos e "irmãos", quase todos os dias. Apinaã ficou com vergonha. Fico com vergonha de seu povo, por ser tão fraco, por não responder á altura.
Depois de duas semanas Apinaã foi solto. Os caraíbas pediram para que ele dissese á sua tribo que eles chegariam na aldeia em cinco dias. Era para eles escolherem: ou se rendem ou lutam. Apinaã agora estava mais envergonhado ainda: o destino dos grandes guerreiros é ser morto em combate, ele, por outro lado, foi preso e agora solto como um simples menino de recados. Apinaã sentia o peso da vergonha nas costas, por isso andava envergado agora.
Quando chegou a taba, disse que queria falar com o velho Pindarô. Todos ficaram surpresos com sua volta. Mas Apinaã não queria falar nada com eles, seus olhares só aumentariam mais ainda sua vergonha. O velho Pindarô chegou.
-O que foi, meu filho?
-Pindarô, os caraíbas me soltaram pra falar com você que em cinco dias eles chegam aqui. Eles disseram pra gente se render ou lutar.
Pindarô pensa na notícia e de pronto responde:
-Que bicho ignorante esses caraíbas! Pensam que nós vamo nos render! Essa terra foi nos dada por Kiantô, eles ganharam a parte deles e querem a parte de todo mundo. Se os barés esqueceram disso vamo lembrar á eles. Vamos continuar lutando!
Os curiosos ao redor, eram muitos, se entusiasmaram. Mas um perguntou:
-Pindarô, e como nós faz pra lutar com eles? Eles tem mais armas que nós e os barcos deles são fortes como couro de jacaré! Nós temos pouca gente pra lutar, pouca carabina pra atirar...
-Adjnew, não se preocupe. Kiantô nos ajudará.
Pindarô parou um pouco pra pensar, enquanto pensava remoia nos dentes a erva que tinha comido para curar a dor na garganta. Depois de pensar e ruminar, falou:
-Karidjé e Techua, vocês vão escolher mais 3 home pra ir com vocês descer o rio. Vocês vão derrubar árvores no rio pra atrasar eles.
-Sim, Pindarô.
-Nós vamo pensar no que fazer enquanto isso...
Apinaã acompanhava tudo cabisbaixo,olhando com o canto do olho. Com o canto do olho ele também podia ver o pessoal em volta olhando para ele, com surpresa e com desconfiança.
-Apinaã, meu filho, vamo conversar.
Pindarô pegou Apinaã pelo braço e levou até sua oca. A oca de Pindarô era grande, tinha muitas redes. Sua mulher tava no chão cozinhando um cauim pra melhorar sua dor na barriga. Sua filha tava balançando em uma das redes.Era índia bonita ela.Chamava Mani e tinha olhos bonitos de quem tem curiosidade e simpatia pela vida. Ela olhava para Apinaã com um olhar desconfiado. Apinaã se surpreendeu a ver que ela estava diferente, com uma trança colorida, sinal de que iria se casar em breve.Mas logo o olhar dos dois se chocou; ele, envergonhado, desviou, ela, sapeca, achou graça.
-Mani, por favor sai um pouquinho pra eu falar com o moço.
Ela então desceu da rede, com o corpo mole, e saiu da oca.
-Eu pedi pra ela sair, porque tenho medo dela se assustar com as coisas que nós vamo falar.
-Que coisa, Pindarô?
-Dos caraíbas, meu filho. Ela tem medo deles. Ela nunca viu, mas acha que eles tem unha de tamanduá e corpo de onça.
Pindarô cospe a ervinha que tava no canto da bochecha.
-Apinaã, tu ficou preso na casa deles?
-Fiquei,Pindarô.
-E como é que é? A casa é muito grande? Tem muita arma?
-Era duas vezes mais larga que tua oca. Tinha umas arapuca onde nós ficava preso. Ficava dois caraíba vigiando a gente e quando o caraíba chefe saia, eles pegava um de nós da arapuca pra fazer maldade.
-Bicho ruim esses caraíba!
-Mas eles tinha muitas armas. As carabinas deles eram grandes, tinham também uns trabucos mais leves que levam na cintura.
-Garrucha?
-Sim, mas sem pólvora.
Chegou a ver o barco deles? Se tinha muito ou um só?
-Num vi, Pindarô. Eles me soltaram no meio do mato de noite.
-É... Não se preocupe, Apinaã. Nós ficamos felizes por você ter voltado. E tu lutará ao lado agora de sua família.
-Sim, Pindarô.
Os dois pararam de falar. A mulher de Pindarô deu uma cuia com o cauim pro velho e, pra não fazer desfeita, ofereceu uma tigela de açaí pra Apinaã. Os dois homens pensavam longe agora. Enquanto Pindarô tava preocupado em como arrumar a aldeia pra atacar os caraíbas, Apinaã estava certo de que eles não tinham chance nenhuma. Apinaã tava lamentando já a morte de todo mundo, principalmente a sua. A guerra ia ser um massacre. Ele tinha visto a guerra no Jari. Os caraíbas tinham carabinas que cuspiam pra mais de mil tiros de uma vez só. Eles nem precisavam estar perto pra atirar. Aquela, por exemplo, estava presa na copa das árvores, atirando pra baixo.
O resto da tarde, Apinaã andou pensativo, sentado perto da oca do velho. Foi até a beira do rio, pedir á Kiantô, a cobra das costas de arco-íris, para ajudá-los. Mas Apinaã estava duvidando de Kiantô. Nunca vira ela e ela não impediu a morte dos seus "irmãos". Pra ele Kiantô tava era em outra braçada do rio, bem longe dali.
Mas enquanto olhava o rio Apinaã teve idéia. Ele sabia de quem morava por perto.
Quando Kiantô trouxe os Acunstu para essa beirada do rio,advertiu que ali perto morava Ururã, o pai dos jacarés. Ururã era um jacaré gigante, dos olhos vermelhos, que de tão velho o couro tinha virado pedra o que fazia ele impossível de ser morto.
Ururã se alimenta de tudo quanto é bicho, até de seus filhos, mas ele tem preferência pelas mulher virgem e pelas crianças. Ao contrário de Kiantô, Ururã sempre apareceu nessas paragens, pelo menos desde que Apinaã se entende por gente.
Vez ou outra as crianças que vão brincar na beira do rio são engolidas por ele. Não só aqui na taba, como nas tribos rio abaixo. Os Kadiwéu tentaram matar ele uma vez, depois dele ter comido a filha do pajé. Mas não deu em nada. Os cinco guerreiro que foram atrás dele voltaram boiando pelo rio tudo despedaçado.
Apinaã teve idéia. Pedir ajuda de Ururã, afinal, que ele saiba, ele odeia os caraíbas tanto quanto eles.
Chegando o final da tarde, Apinaã pegou uma canoa e disse aos outros que ia pescar. Subiu o rio. Quando chegou na parte do rio onde el vira dois, Apinaã pegou o caminho pra toca do Ururã. Era parte do rio onde a mata se fechava mais, parecia que aos pouco o teto das árvore ia cair no rio. Chegou num banco de areia, chamou por Ururã.
-Nunca vi macaco mais burro que tu, disse uma voz cavernosa vinda do canto do rio mais á frente.
Apinaã olhou bem e percebeu que o tronco caído mais á frente era o próprio Ururã.
-Num sou macaco, sou homem!
-Homem é macaco pelado e sem rabo. Tem o mesmo gosto que macaco. Mas quando é filhote ou é fêmea e num deflorou o gosto é diferente...
O monstro abrira os olhos, os olhos vermelho. Apinaã tentava criar coragem pra encarar o bicho. Mantinha a carabina perto da mão, mas sabendo que tiro nenhum ia fazer efeito.
-Eu vim aqui pra fazer acordo com você.
-Ururã num faz acordo.
-Ururã também não gosta dos caraíbas.
-Hm... Caraíba, bicho feio. Com gosto de pus...
-Mas nós também não gostamos deles.
-Ninguem gostar de caraíba, só eles mesmos.
-Então... Ururã pode se juntar a nós pra acabar com caraíba.
Nessa hora saiu aquele bramido, que parece que trovão dentro da barriga do bicho. Mas não era fome não, era riso.
-Eu não tenho que me preocupar com caraíba não,macaco pelado. Eles pode tentar me achar, mas nunca vão me matar. É pena ter menos gente pra comer, mas o que importa é que vou continuar andando pelo rio, comendo quem eu quiser.
Apinaã temia por sua vida: se não conseguisse o acordo é certo que o bicho ia engolir ele de uma bocada só.Então ele se desesperou:
-Ururã e se tu ganhar 5 virgens?
O monstro foi se aproximando lentamente do guerreiro, com interesse nos olhos.
-Hmm... faz tempo que Ururã não come virgem, parece que os caraíbas espantaram elas. Se Ururã te ajudar tua tribo vai ter que dar 5 virgens pra ele e 5 filhotes. E uma delas tem que ser filha do chefe!
Apinaã concorda.
-Quando chegar os caraíbas?
-Daqui a dois dias.
-Ururã vai tá lá. Mas depois que matar os caraíbas vocês vão ter que entregar a comida de Ururã. Deixa elas na beira do rio que eu venho pegar. Num se esquece, macaco pelado. Se num trazer elas, vocês nunca vão poder nadar no rio de novo que Ururã vai caçar vocês pra sempre.
Apinaã ouve atentamente. Ururã, lentamente volta para o canto em que estava. Apinaã pega sua canoa e sai rio abaixo. Enquanto vai descendo o rio, a tarde vai caindo, refletindo as cores do sol nas águas barrentas. Na cabeça, Apinaã está meio confuso. Afinal, Apinaã acabou de condenar 10 pessoas de sua tribo. Mas, pensa ele, pelo menos o resto da tribo vai continuar vivo. Enquanto rema, Apinaã tenta se convencer de que salvou toda a tribo.
(CONTINUA...)
quarta-feira, 23 de junho de 2010
Geni e o Zepelin
Surreal!Mas divertido, principalmente no refrão.
GENI E O ZEPELIN
Chico Buarque
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
O Fim do Brasil
O Barão de Jeremoabo era deputado federal e um dos primeiros membros do Partido Conservador em Taubaté, fato aliás do qual muito se orgulhava. No entanto, desde que o Imperador montara o Gabinete da Conciliação, constituído em sua maioria dos setores liberais, as reclamações sobre a política da Corte são frequentes, para desgosto de seus amigos que já as sabiam de cor. Por isso quando o Barão perguntou se eles sabiam qual foi a última mancada do ministro Lafayette todos franziram a testa.
-Pois saibam que esse fanfarrão teve a coragem de afirmar que chegou no Ministério cavalgando em um livro de Direito! Vejam só! Então o sr. Lafayette é o único homem que se fez sozinho! Então ele não teve a ajuda do ministro Sinimbu! Vejam só. Eles pensam que nós somos imbecis para cair numa patota dessa…
-Não se preocupe, caro Barão. Ministérios vem e vão. Aposto que na próxima década o gabinete será totalmente conservador, disse o Marquês de Água Branca.
-De fato o será, o Marquês de Paraná me assegurou. Mas o que me deixa preocupado é a arrogância destes “doutorzinhos”! Não será muito difícil que eles façam uma presepada no governo e sobre ao gabinete que vier o mérito de gestar o problema!
-Ora, Barão, acredito que a maior besteira que eventualmente possam fazer serão se embriagar-se em bailes ou serem pegos em rodas de capoeira. Não poderão fazer besteiras maiores. Veja bem: Abolicionismo? Sabemos que a maioria deles tem escravos e mesmo os que não os possuem na certa tem medo de perder o apoio dos demais fazendeiros.Republicanismo? Além da capital de São Paulo e dos becos do Rio onde mais se ouve falar em República? Meu caro, mesmo todos os republicanos juntos não poderiam fazer um levante em um município sequer! Por isso, meu amigo, fique tranquilo, não há muito com o que se preocupar vindo destes homens.
-Assim espero, caro Marquês. Assim espero…
-Não dê motivos para perder a pouca juventude que ainda lhe resta, amigo, com os caminhos da política… (apontando para sua xícara de café, apresenta sua conclusão para o amigo) Essa xícara aqui tem sustentado o Império á tantos anos, como bens sabe, e o Império não é louco de não protegê-la.
Ao Comendador Queiroz Barros, que assistia a tudo calado, veio uma idéia.
-Meus amigos, diante da conversa que vocês dois travavam sobre os rumos da política eu tive, digamos assim, um desvario, um sonho.
Uma breve pausa para aumentar o interesse dos amigos – o Comendador era um homem muito afoito á gestos teatrais, aliás, á sua paixão pelo teatro sobrepunha-se seu amor pela literatura.
-Imaginei o seguinte: e se um dia o café desaparecer de todas as lavouras não só do Vale como de todo o Brasil?
Nova pausa. Tanto o Marquês como o Barão não entenderam a proposição do Comendador.
-Desaparecer como? – pergunta o Marquês.
-Ora, desaparecer! Como se fosse magia, ao amanhecer de um determinado dia os encarnados brotos do cafeeiro evaporaram. Não só em São Paulo, mas em todo o país. Nunca mais veríamos novamente um grão de café que seja.
O Barão de Jeremoavo, amigo a mais tempo do Comendador que o Marquês e por isso mais ciente do caráter teatral do seu amigo, já entenderá a proposta de seu amigo.
-O que o senhor Comendador está nos sugerindo é um exercício de imaginação, estou certo?
-Claro, Barão. Respondeu, satisfeito pelo amigo ter entendido sua intenção.
-Ora, um exercício de fantasia, isso sim. Desaparecer com todo o café do país sem nenhum motivo natural, sem causa aparente, é uma elocubração muito abstrata! – Disse o Marquês, homem de negócios, que não conseguia entender o ponto do Comendador ainda.
-E o que seria a imaginação, meu caro Marquês, se não uma elocubração abstrata? A imaginação, meu amigo, é isso e muito mais. É dela que se trata a Literatura , bem como toda a Arte. E digo mais: ela é um dos propulsores do avanço de nossa civilização. Sim, tomemos por exemplo, a invenção das locomotivas: uma máquina que se movimenta com vapor não lhe parece algo meio… não-natural?No entanto, a locomotiva existe e está aí, a carregar sacas e sacas de café. E se o inventor delas não tivesse imaginado uma máquina que não fosse movimentada por cavalos simplesmente por parecer algo absurdo?
-Mesmo assim, carbonário colega, a imaginação nesse caso serviu a um propósito: a melhorar a locomoção das pessoas. Qual seria o propósito em extinguir o café do mundo? Não vejo nenhum interesse prático para isso, a não ser para os radicais anti-patrióticos…
-O propósito aqui seria simplesmente se divertir. Ora, imaginemos o que aconteceria com o país se isso viesse de fato a ocorrer. Além disso, podemos até refletir um pouco, criar maneiras de nos precaver a tal acontecimento – que Deus queira nunca aconteça!
-Marquês, – fala o barão, com a mão sobre o seu braço – nosso amigo, na verdade, está tentando avaliar a sua imaginação.
-Ora, não precisa ser muito criativo, para prever o que aconteceria: seria o fim do Brasil! E não precisaria de muito; se o café sumisse somente no Vale já seria o bastante para tal desastre. O que mais esse país produz além do café? Nada! A cana está em baixa, o algodão, com o final da guerra nas Treze Colônias, desvalorizou-se, o tabaco e o cacau são produtos secundários.
-Só por não termos mais produto de exportação estaríamos liquidados, caro Marquês? – pergunta o Barão, com aquele olhar de quem está avaliando os colegas, mesmo olhar do Comendador Queiroz Barros.
-Sr. Barão, o que faz uma nação é a sua economia. Não existe nação sem economia, uma nação que não se sustente não é nação, é um entreposto, uma colônia. Sem o café voltaríamos a ser colônia, dessa vez da Inglaterra. E não como antes, não senhor, dessa vez seria muito pior, porque esses anos todos sob o encargo da Metrópole tínhamos produtos valiosos; sem o café, não teríamos nada! Nos tornaríamos como uma colônia africana, como a mais pobre colônia africana, como um Congo Belga!
O Barão ouvia a tudo olhando para sua xícara, enquanto alisava a ponta dos longos bigodes, costume que se tornara mania desde que deixara o crescer. Ao fim da explanação do Marquês, o Barão começaria a sua. Como de hábito - antes de cada discurso no Parlamento o fazia – abre sua fala com um pigarro.
-Pois eu discordo do senhor, Marquês. Eu penso que uma nação é mais que o que ela produz e o que ela vende. Uma nação é feita pela moral de seus homens, pois sem moral estaríamos nus fazendo pajelança pelo mato. É a moral que nos movimenta e nos faz ser civilizados, cada vez mais civilizados. Infelizmente nossa nação não é totalmente civilizada ainda, graças ás populações escravas e nativas que a habita. Nesses anos todos trouxemos um número considerável de escravos africanos para nossas terras, de tal maneira que temos aqui em Taubaté mais de dois terços de escravos no total de nossa população. Imaginem os senhores o que aconteceria se eles ficassem sem trabalho. Sem lavoura, no que trabalhariam todos eles: Em afazeres domésticos? Nada disso, meu bom Marquês! Seríamos forçados a assinar a Abolição! Teríamos uma população mestiça… A não ser que o Visconde de Taunay continue com seu excelente trabalho de recrutar imigrantes europeus para nosso país, que agora seriam dirigidos ás cidades, ao comércio.
Pausa para um pequeno gole de café.
-E, além do mais, – retorna o Barão – temos que considerar os riscos de uma guerra civil! Pois vejam bem: toda essa população escrava tentaria fugir do jugo do fazendeiro, agora que não há motivos para estarem atrelados á terra e aí começariam levantes, tais como aqueles ensaiados pelos negros em 1842! Lembram-se do medo? Não só guerras com escravos, mas guerras com a oposição também!! Afinal, os radicais voltariam, os gabinetes da Conciliação se dissolveriam em ataques ferinos, em mortes e atentado. O Brasil se tornaria um novo Haiti ou uma nova França após a queda da Bastilha, ou ambos!
O Marquês começou a falar, dessa vez discordando do ponto de vista do ilustre colega sobre a alma das nações. O Comendador Queiroz Barros se divertia em ver os dois discutindo. Agora ficava nítido a posição de cada um deles: o Marquês de Água Branca era um homem de negócios, enxergava os problemas pelo prisma da contabilidade, era muito prático, sempre o foi. Foi assim que ascendeu á condição de fazendeiro, pois, até onde Barros sabe, ele era filho de vendeiros, mas ficou rico investindo em mulas, vendas e depois em terras. O Barão de Jeremoavo era um aristocrata, um estadista, pensava, bebia, comia e exalava política. Seu pai era um tremendo estadista, amigo íntimo do Visconde de Itaboraí e de Vossa Majestade. O Barão conseguia seus projetos na Corte através de muita e muita negociação, proferindo longos discursos com os já característicos pigarros.
O Comendador estava a assistindo a um debate entre dois homens muito diferentes, defendendo suas visões como verdadeiros filósofos, e sentia um certo gosto nisso. Na certa porque o Comendador é, antes de tudo, um intelectual. Formado em Direito, mas nunca exercera a função; herdara as terras do pai, mas nunca entendeu muito bem sobre as técnicas usadas na lavoura. Ao contrário, o Comendador era um bacharel da Filosofia e um fazendeiro literário. Por isso ele se ocupava muito pensando em historietas e em debates. Ele gostava de provocações e de soluções criativas. Na sua casa não é raro chamar seus escravos e agregados e propor-lhes algum problema matemático ou alguma anedota filosófica, como o dilema de Zenão. Ele gosta de fazer isso.
-E o que você acha, Comendador? O que acha que aconteceria?
O Comendador então se prepara.
-Bem, Marquês, acho que primeiramente todos tentariam explicar o que aconteceu. Seriam chamados milhares e milhares de cientistas de todo o mundo para solucionarem o dilema e então, depois de alguns meses uns chegariam a conclusão de que o café evaporara através dos gases expelidos pelas fábricas inglesas na atmosfera e outros deque se trata de um raro caso de esterilização que acontece nas lavouras do mundo inteiro a cada 100 anos.
-Ora, pensei que nesse seu hipotético mundo sem café não existiria explicações científicas para tal “exercício de imaginação”!, comenta entre a ironia e a curiosidade o Marquês.
-Não, meu caro colega. Toda história, por mais fantástica que seja, tem que conservar uma centelha de realidade para ser crível, meu amigo.
-Então o que fez o café desaparecer? Os gases ou a esterilização?
-Nenhum dos dois, meu amigo. Essas são apenas afirmações hipotéticas de cientistas, que como nós sabemos são falhas até que se prove o que realmente aconteceu. O caso é que o mistério sobre o café deve ser mantido. Afinal, se esse é um episódio fantástico, como todo bom episódio fantástico, deve contar com o mistério, o inexplicável, pois isto o torna atraente, isto prende o leitor!
-Muito bem, Comendador. E o que acontece com a economia, ao seu ver?
-Bem, acho que haveria um caos na economia. Como o Marquês bem lembrou, nossas exportações são baixas frente ao mercado internacional. O governo teria que investir em algo mais tangível. É claro, depois de muita balbúrdia. Acho que aconteceria sim alguns levantes, mas que seriam facilmente controlados. Os republicanos conseguiriam redirecionar o povo com sua falácia, é claro, ameaçando a Monarquia. No entanto, diante de tanta miséria, eles se uniriam ao Imperador para reconstruir o país novamente. Afinal, eles também querem o poder. Surgiria uma conciliação entre os republicanos e os monarquistas. Os levantes seriam reprimidos mais uma vez, como em 1842…
-E em que consistiria nossa economia?
-Na indústria! O Imperador tentaria algo mais tangível, como disse, e apoiaria a entrada de mais indústrias estrangeiras, além de diminuir o imposto industrial. Teríamos mais Mauás e Ottonis. Os escravos e imigrantes seriam redirecionados á indústria, sendo os primeiros libertos, uma vez que a escravidão não poderia imperar nesse suposto status quo. Em pouco tempo o Brasil se industrializaria, conseguindo se reerguer da grande crise, tornando-se uma Inglaterra dos trópicos.
O Marquês ri, enquanto o Barão ainda tenta digerir o fato da conciliação entre republicanos e o Império.
-Então a indústria nos salvaria? Francamente, senhor Comendador, isso não é ficção é humorismo! No seu mundo hipotético o fim do café ajudaria o país a se tornar rico, uma “nova Inglaterra”, regenerando nossa população no trabalho. Nem Thomas Morus poderia criar tamanha sandice! Com todo respeito, senhor Comendador, de crível sua suposição não possui nada!
-Ora, é uma possibilidade! Se o senhor vivesse na Idade Média diria que máquinas que imprimem letras ou veículos que se movimentam graças á potência de uma fornalha seriam verossíveis?
-Claro que não, mas dizer que o Brasil se desenvolveria sem o café é ir longe demais, Comendador. Nenhum alucinado profeta medieval seria capaz de enunciar tal coisa.
-Bem, gostaria de lembrar que é apenas um exercício de imaginação. Em se tratando de imaginação tudo é possível.
-Ainda bem que é só isso! Imaginem se isso realmente acontecesse! Nem sei o que faria! – disse o Barão entrando de novo na conversa, após acabar com sua xícara.
-Fique tranquilo, Barão. Só nós conseguimos plantar o café me lavoura, nenhum outro país o faz tão bem e não o fará por séculos! Deixemos para nos preocupar com o fim do café e o consequente fim do Brasil daqui á cem anos, portanto.
Fechando assim sua fala, o Marquês pegou sua xícara, abandonada no início da conversa, mais uma vez, dando cabo de seu conteúdo. O Comendador Queiroz Barros, no entanto, se maravilhara com sua criação, seu Brasil industrial e gigantesco enquanto retomava, como o Marquês, sua xícara. Já chegava a imaginar as fantásticas máquinas que cruzariam nossos ares e mares, via-se como um Jules Verne provinciano, a engendrá-los em pensamento. Deleitava-se com suas criações mais que com o próprio café, que chegava ao fim.
Afoturismos IV
terça-feira, 22 de junho de 2010
Afoturismos III
-Boa tarde.
Aderaldo, eu gostaria que você nos explicasse melhor qual o objetivo da sua associação.
-Bem, Aníbal, eu gostaria de ressaltar que nossa organização é um movimento social como os demais, o que muda é apenas nosso objetivo. E qual seria ele? Bem, nossa missão é proteger a prática cultural do canibalismo.
Mas não é uma prática muito... bizarra, por assim dizer?
-Veja bem, Aníbal, o canibalismo é uma coisa muito normal. Ora, não existem pessoas que comem as unhas? Que bebem a urina para rejuvenescer? Isso também é canibalismo.
E quanto á comer carne humana?
-Bem, esse é o pessoal mais hardcore do movimento. Mas, mesmo assim, estamos numa democracia, temos o direito garantido por lei de comer o que quisermos, não é?
Mas isso não viola um pouco o respeito aos demais seres humanos?
-Claro que não. Veja bem, nós temos um fundo especial para onde são enviados membros de pessoas amputadas.
E é suficiente para todos os membros da organização?
-Sim, ainda mais agora que fizemos um acordo com o Clube dos Apotmenofílicos.
Apotmnenofílicos?
-Isso, é todo aquele que sente prazer em se amputar.
Isso não parece meio macabro?
-Bem, gosto não se discute...
Com certeza...
Steampunk: o que é isso?
segunda-feira, 21 de junho de 2010
Tempos de Vitória
Por que o steampunk é sempre associado á era Vitoriana? Para respondermos a essa questão primeiro temos que responder á outra: o que é a Era Vitoriana? A Era Vitoriana compreende o período de 1837 á 1901 e é assim chamada por englobar o longo reinado da Rainha Vitória.
Vitória subiu ao trono numa época em que o imperialismo britânico estava se consolidando, tanto na Ásia(Índia) como na África (destaque para a compra do Canal de Suez).A Revolução Industrial também estava se desenvolvendo. mesmo que as condições de trabalho não tenham melhorado muito na maioria dos complexos industriais, pelo menos agora havia uma legislação trabalhista sendo criada no Parlamento. A prosperidade financeira da Inglaterra fez surgir uma classe média mais forte, nem por isso menos conservadora. Na política, estamos em um período de conciliação entre os adversários de sempre, os Whigs(conservadores) e os Thories(liberais).
Além disso há que salientar a profusão de "aventureiros" britânicos no período, inaugurando uma nova classificação no mundo da aventura: o aventureiro vitoriano. Geralmente, homens de boa formação que prezam pelo cavalheirismo e idolatram a ação, se enveredando pelos locais mais exóticos,pelo prazer da aventura (como todo bom aventureiro) e pela busca de fama. Nesse rol se encontram desde o fictício Lorde Roxton de O Mundo Perdido (Conan Doyle)até o famoso e misterioso Richard Burton (não, não é o ator de Cleópatra e o Manto Sagrado), que esteve no Brasil!
Richard Burton(1821-1890), orientalista, oficial da Marinha Britânica.
Na literatura temos o surgimento de poetas como W.B Yeats, a crítica social de Charles Dickens, as aventuras de Louis Stevenson e Arthur Conan Doyle,a ironia de Oscar Wilde e Bernard Shaw. Na ciência, vale destacar as teses de Darwin e Wallace sobre a evolução das espécies, as descobertas de Lorde Kelvin sobre a física e a temperatura, além é claro da evolução das máquinas á vapor. Na virada do século podemos ver automóveis já andando por Londres.
Resumindo a Era Vitoriana em uma palavra ela seria: euforia. Sim, foi uma euforia, principalmente para a classe média. Euforia é um elemento-chave da Belle Epoque. Além disso há que salientar a criação de uma idéia de progresso e a fé inabalável nele, principalmente através da Ciência.
Portanto, quando Bruce Sterling e William Gibson escolheram a Era Vitoriana como cenário de seu famoso livro The Difference Engine, considerado o Pai da Steampunk,não foi por acaso. Num contexto como esse de euforia, de desenvolvimento industrial, de aventureiros e de cientificismo, boas histórias são o que não faltam. Aliás, os próprios contemporâneos perceberam isso,H.G.Wells, Jules Verne, etc. Aliás, esse clima não era próprio da Inglaterra, ele era a atmosfera da maioria dos países da Europa na época. A Belle Epoque institucionaliza essa euforia.
É um ramo muito frutífero não só pelo que tem de belo e cativante, mas pelas tensões subterrãneas também, presentes, inclusive na própria Inglaterra vitoriana. Ora, a questão dos vagabundos, das péssimas condições de trabalho dos operários, do imperialismo na Ásia e África (basta lembrar da guerra dos Sipaios na Índia e a guerra dos Boêres na África do Sul, dentre tantas outras).
De qualquer maneira, a Era Vitoriana é uma época realmente muito interessante, cheia de mudanças, algumas drásticas outras não. Aliás, um dos maiores desafios dos escritores do gênero nos países não anglo-saxões é justamente o de desvincular o próprio gênero desse período, de tão enraizado que está com a Inglaterra vitoriana. Mas esse debate eu deixo para uma outra hora.
Afoturismos II
A cotação da água nas Bolsas de Valores através do mundo subiu bastante.
Política:
O Brasil cogita vender todo o Aquífero Guarani para pagar a dívida externa.
Cultura:
Sociedade civil organiza campanha "o aquífero é nosso!"
(retirado de um jornal do futuro)
Meu pai
Não me lembro do meu pai. Não me lembro do rosto dele. As fotos que minha mãe me mostra dele não me atiçam a memória, não adianta. Minha mãe morria com isso. Ela dizia que os homens pegaram meu pai porque ele fala a verdade e falava demais. Eu ficava com medo dos homens e de falar a verdade.
Minha mãe ia sempre na Junta Militar, perto da esquina de casa, saber do meu pai, mas eles diziam que ele não estava lá. Ela uma vez arrumou briga com um dos moços de lá, mas depois ela se acalmou. Minha mãe pedia para eu não me esquecer do meu pai, mas eu não conseguia lembrar dele.Ela apertava a minha mão bem forte e começava a chorar, pedindo para não esquecê-lo e eu não entendia.
Ela foi procurar mais informações sobre ele no cartório, porque ela queria provar que era casada e ganhar uma indenização do governo pelo menos para poder comprar comida e o material da escola. Mas nada, o governo dizia que ele não existia. Ela mostrava os documentos dele, mas nada. Ela ficava muito frustrada com isso, se trancava no quarto e só ouvia os soluços.
Eu comecei a pensar que meu pai não existia depois que uma amiga minha disse que a mãe dela havia dito que meu pai não existia e era invenção da minha mãe. Minha mãe andava meio estranha mesmo, talvez fosse loucura dela. Mas ela me mostrava as fotos. Quem era aquele homem então? Eu não entendia.
Nossos vizinhos não falavam mais conosco e meu avô e minha avò pararam de nos ver.Eu também achava isso muito estranho. Mamãe disse que era porque eles tinham medo de sumirem como aconteceu com papai. Não sei quem sumiria com as pessoas, mas de uma coisa tinha certeza: não era o bicho-papão. Mamãe ia sempre na Junta. Quem sabe as pessoas da Junta que sumiam com os outros. Eu começava a imaginar que dentro da Junta tinha um buraco negro, um portal onde eles jogavam as pessoas e elas sumiam.
Depois que conclui isso passei a me afastar de minha mãe,pois ela falava,brigava, criticava as pessoas da Junta muito.
Bem, os anos se passaram, eu cresci, fui para Faculdade, me afastei de minha mãe, me formei e casei. Um dia liguei a tv e estavam cobrindo o julgamento de Videla, Massera e demais militares que começaram com o novo regime em 1976. Um homem estava depondo. Era um homem muito calmo. Ele estava falando sobre como deixava ele e seu parceiro de cela sem comida na Junta. Seu parceiro era José Roberto Perrin. Era meu pai. Eu tive um choque. O resto do julgamento nem acompanhei, fiquei só pensando: então ele existiu! E falei: Meu pai. Nunca tinha falado essas duas palavras, muito menos o nome dele depois que fui para Faculdade. Imediatamente, lembrei da minha mãe. Ela estava certa, ele existiu. E até eu sumi com ele, sumi com ele da minha mente.Comecei a chorar.Era felicidade, culpa, sei lá, tudo isso.Meu pai voltou a existir depois de tantos anos. Meu pai.
minicontos II
Coronel Muricy gostava de escrever, nas horas vagas, pequenas piadinhas sobre o futuro. Quando inventaram o celular, ele se lembrou de que tinha previsto isso anos antes numa de suas piadinhas. Agora Muricy tem certeza que não nasceu para a carreira militar, mas para ser profeta.
O ATAQUE
"O plano é o seguinte: sairemos pelo bueiro enquanto estiverem dormindo e assim atacaremo-os de surpresa. Senhores, amanhã essa casa voltará a ser nossa!" Disse a barata.
ESTADISTA
Quando era criança, roubava as mangas do seu João e colocava a culpa no seu colega Henrique. Quando quebrava as janelas fingia que não era consigo. Tudo apontava para um futuro promissor na política.
O BOTÃO
-O senhor sabe por que está aqui?
-Sim, Meritissímo.
-O senhor tem ciência de que sua vida está em jogo aqui?
-Sim, Meritíssimo.
Na sua voz, um misto de serenidade e culpa. O juiz olhava-o com uma certa inquietação, não podia entender o motivo de tanta serenidade, muito menos de culpa.
-Sr. M, código 12-4b, residente do complexo K, o senhor está sendo acusado de apertar o botão vermelho e com isso exterminar 36 mil vidas. Como o senhor se declara?
-Culpado, Meritíssimo.
Culpado? Já tinha ouvido isso antes, mas sempre quando o acusado era confrontado com as provas forense e não lhe restava outra saída. Esse homem, no entanto, já de antemão, se declara culpado! Será encenação? O juiz busca em seus gestos alguma prova de teatralidade. Seu olhar distante parece uma das mais dissimuladas, mas ainda não tem total certeza.
Por mais que queria investigar o estranho comportamento do reú, o juiz tem que proferir a sentença.
-Sr. M, o senhor está condenado por homicídio em massa. Será sentenciado ao botão vermelho. Algum último desejo?
-Sim, eu gostaria de falar uma coisa...
Era isso, agora ele encenará todo um teatrinho. O juiz agora entendeu seus planos: ele quer ser um mártir. Bem, vamos ver até onde ele levará isso.
-Pode falar.
Seus olhos ficam mais agitados, tentam olhar para o juiz, olhar para as testemunhas. Suas mãos estão trêmulas. Na certa, é o peso da morte, de sua morte.
-Eu... sinto muito.
Envergonhados seus olhos voltam ao seu limbo e o corpo parece ter voltado a sua tímida serenidade.O juiz friamente aperta o botão vermelho e o homem cai do alçapão. Não se pode ver onde ele caiu, mas podemos ouvir seus gritos de dor se dissipando e um ligeiro cheiro de queimado penetra no tribunal. Mais uma vez a justiça foi feita, conclui o juiz.
Minicontos
Foi consultar o I Ching. "Prepare-se para o novo". Não entendeu.
No dia seguinte foi atropelado por um carro ecológico importado.
MONSTRO
Com medo do monstro debaixo da cama, Dinho correu para a cama dos pais. Eles garantiram que ali estaria seguro. Estava quase fechando os olhos quando ouviu aquela voz cavernosa: Boa tentativa, Dinho...
MÃE
"Cuidado aí, meu filho! E nunca saia de casa sem seu casaco!"
Riu em silêncio do outro lado da linha, no Marrocos.