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domingo, 30 de janeiro de 2011

Pecado

Cidade pequena. O centro da cidade, urbanística e simbolicamente, era a Igreja. O padre era quase o prefeito.
O menino não era daqueles levados, mas fazia parte da turma dos levados. Ele e os outros garotos colocavam bombinhas no rabo dos gatos, tentavam levantar a saia das beatas em dia de procissão Coisas do tipo.
O menino levava bronca da mãe e do padre quando era pego. Ás vezes nem tinha feito nada, mas só por estar junto com os garotos já apanhava. Pior era o castigo dado pelo padre: rezar cem padre-nossos e mil ave-marias ajoelhado no milho. O padre já tinha um pote especial com milho para os garotos. Sumir com esse pote era um dos maiores desejos dos garotos.
Um dia seus amigos estavam todos reunidos em torno do mais atentado da turma. Não estavam correndo, jogando bola de gude ou subindo nas árvores. Então deviam estar fazendo algo muito especial. O menino se aproximou e descobriu. Eram cartões de mulheres peladas. A maioria era morena. O cabeça da turma, aquele que achou o baralho inclusive, ficou logo com a loira e a mais peituda. Mas vendeu o resto do baralho. Vendeu não, trocou com os outros por alguma coisa. O menino conseguiu uma por um pote de geléia de jabuticaba da sua mãe. Era uma morena com longos cílios, encostada em uma coluna com seus braços por cima da cabeça deixando seus seios assim completamente á vontade.
Enquanto ninguém via, ele pegava o cartão e admirava a sua morena. Ficava pensando se todas as mulheres eram assim por debaixo do vestido. Passava alguém na rua, escondia. O menino passou a olhar as beatas de outro jeito e passou olhar a menina do outro lado da rua de outro jeito. Era morena também, não tinha os cílios compridos, mas tinha olhos grandes. Aliás, parecia muito com a sua morena. Talvez fosse parente dela.
Apesar do sermão do padre dessa semana ser direcionado ás roupas “ousadas” de uma moça que morava perto do córrego, parecia ter sido feito para o menino. O padre falava de revelar o corpo, “colocar nosso corpo á mostra para todos verem como em uma banca de peixes”. Isso era pecado! O menino não sabia o que era pecado, mas sabia quais eram eles: avareza, ira, soberba, preguiça, gula, inveja e luxúria. Na cabeça do menino, pecado era aquilo que as pessoas fazem de ruim e escondem. O que ele e os garotos faziam era diferente, era brincadeira. Mas andar com poucas roupas ou nenhuma era pecado, “pecado de quem faz e de quem vê”. A morena então estava pecando. E o menino também! “Vocês sabem o destino dos pecadores? O caldeirão do inferno!Sabem como é o caldeirão do inferno? Ah, meus amigos não queiram saber! Um imenso caldeirão cheio de lodo e óleo fervente, onde estão todos os pecadores sendo puxados pelos pés por demônios no seu fundo que a cada dia mordem mais e mais seus membros. E isso por toda a eternidade!” O menino, como a maioria dos garotos na Igreja, estava quase chorando.
No mesmo dia quando chegou em casa, resolveu dar um jeito na sua morena. Rasgou a carta em mil pedaços, até não poder mais ver qualquer pedaço do corpo da mulher. Jogou tudo num buraco que havia no canto da parede. Na falta de milho, rezou inúmeros padre-nossos ajoelhado em suas bolinhas de gude. No dia seguinte, olhou bem o buraco para ter certeza de que ali estava a prova do crime. Depois da aula foi direto á Igreja se confessar com o padre. O padre pediu que fosse breve, mas já estava desconfiado. O menino contou sobre a morena. O padre queria saber como ele conseguiu ela, o menino contou. A reação do sacerdote foi colérica. O menino já estava chorando antes de terminar a confissão; não queria ficar no caldeirão do inferno. O padre passou a pena: 100 ave-marias e 110 padre-nossos ajoelhado no milho. O menino queria fazer ali mesmo, o padre não deixou. Disse que nesse caso seria em casa, no seu quarto. O menino foi, sabendo que ele e seus amigos ficariam com a bunda assada de tanta chinelada.
Depois de cumprir seu castigo, ficou assustado novamente, mas não saiu de casa. Estava esperando sua mãe chegar com aquele chinelo na mão. Depois de um tempo ela chegou, era tarde. Chegou dizendo que uma amiga sua, mãe de um de seus colegas, descobrira com seu filho cartas de baralho de mulher pelada. O garoto disse que tinha roubado do gabinete do padre. Perguntou se o menino sabia de alguma coisa e ele, confuso, negou, afinal já tinha fugido do caldeirão do inferno e mentira não é um pecado capital.
O padre também negou, mas o caso ficou na boca de todos por muito tempo. Algumas beatas se afastaram do padre depois disso e sempre que passavam por ele olhavam com medo. O menino olhava para o padre como se fosse colega de mais uma de suas artes e o padre olhava para ele como se não soubesse de nada e, por vezes, de quem pedia para não dizer nada. Numa cidade que se comunicava mais por olhares do que por palavras, o olhar do menino para sua coleguinha morena desde então também denunciava algo. Algo que com o tempo se consumou. Se é pecado ou não, o menino não sabia, mas que valia a pena enfrentar o caldeirão do inferno por isso, valia.

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