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sábado, 16 de outubro de 2010

Balancete

Eu tenho hábito de fazer uma auto-avaliação de tempos em tempos da minha vida. Resolvi fazer o mesmo nesse blog. Calma não vou reavaliar aqui a minha vida, vou reavaliar o blog.
Muito bem, comecemos pelo nome: afoturismos. Supõe-se que ele se dedique somente ao futuro e em frases curtas. Logo na apresentação esclareci que não me dedicaria apenas á aforismos e futurismos, mas á ficção científica como um todo, mas principalmente á steampunk, o ramo que mais me interesso. No entanto, poucos foram os contos steamers aqui. Um deles, Entre dois mal ou a Segunda Viagem dos Acuntsu, está incompleto até hoje. O motivo? Preguiça e falta de inspiração. Por favor não ache que estou debochando, estou falando sério. Vou esclarecer meu processo criativo: eu agarro uma idéia (digamos, por exemplo, que a idéia seja sobre um mandarim muito rico que procure a vida eterna) e trabalho em cima dela nas horas vagas (aí vão surgindo o cenário, os demais personagens), mas a história só começa a se desenvolver quando me sinto inspirado (o que é um pouco raro, mas acontece). Quando entro na atmosfera da história eu deixo ela fluir, de modo que quando tenho que sair dela demoro a entrar de novo.
Não consegui mais retornar ao conto dos Acuntsu, foram muitas provas, trabalhos e projetos e para continuar a história teria de me inteirar de novo do seu mote e esperar para entrar, algum dia, na sua atmosfera de novo.
Vocês que me acompanham descobriram que a maioria dos contos não possui a mesma força que, penso eu, o conto dos Acuntsu possui. Lamento, não produzo genialidades, apenas deixou sair da minha cabeça alguns temas e histórias que precisam sair. Eu explico: precisam sair pois isso me ajuda a melhorar o modo como expresso. Sendo assim esse blog, além de ser muito importante para a ficção científica nacional (até parece...), é também um enorme caderno de rascunhos. Eu, que sempre fui muito visual, aqui tento ser mais textual, tentar utilizar a força das palavras. Mas é muito difícil, amigo. As palavras são muito traiçoeiras ás vezes, muitas me fogem quando mais preciso. Mas deixa pra lá, não quero fazer aqui um manifesto contra as palavras, voltemos ao blog...
Há alguns post que abordo temas, ao invés de criar histórias. Os primeiros foram sobre a steampunk, depois alguns sobre invenções estrambóticas, mas reais (caso do Tião Coió e do homem da lambreta envernizada á vapor). Em um post tentei me fazer de flanêur, mas acabei flambado. Além disso, há alguns posts sobre a morte também. Quem não me conhece, ao ver essa profusão de artigos sobre a morte há de pensar que sou gótico. Apenas é um tema que muito me interessa e de que faço questão de abordar quando acho próprio. Além disso, aproveitei e desenterrei uma história minha sobre o tema (A Visita).
Analisando bem, os minicontos e aforismos ficaram na geladeira. Assim sendo trai a idéia do blog de trazer narrativas condensadas, rápidas e pontuais. Antes que me mandem para a masmorra, quero que saibam que tenho muitos minicontos e aforismos escritos aqui em meus cadernos. Em breve os colocarei aqui, só não os coloquei antes por falta de tempo (época de provas, chegando o fim do ano, você sabe).
É, foi isso. Não doeu nada (pelo menos em mim, não). Agora sabemos, pelo menos, o que podemos melhorar. Até o próximo balancete.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Minicontos

O inseto transparente passeia delicadamente pela casa se perguntando aonde foram os inconvenientes gigantes de chinelo.

A senhora encostada na pia descascava o peixe.
"Descascar acari não é fácil, não! Tem todas umas manhas. A faca não pode raspar muito. Naõ pode ser que nem descasca mandioca, tem que ser como se tivesse pincelando, entendeu? Pintando um quadro. É... Descascar acari é uma arte!"

Ele ligava, ninguém atendia. Onde estaria ela? Com outro? Não é possível! E ele aqui no parque esperando ela chegar a uma hora! Liga mais uma vez, ninguém atende. É muita falta de consideração, viu! opa, alguém atende, é a mãe dela:
-Beto? Tudo bem? A Joana tá dormindo. Quer que eu acorde ela?
-Não, não, não precisa.
Desliga. Pô, dormindo?! E o nosso encontro no parque? Peraí... Liga de novo.
-Alô, dona Maria? Ela tá dormindo? Tem certeza mesmo?

Subterrâneos

Quando era criança acreditava que as paredes eram ocas e ali dentro habitavam pequenas pessoas, pequenos seres. Imaginava uma multidão de cosinhas andando lá dentro, como se fosse o centro de uma cidade.
Á noite, esperando o sono chegar, ás vezes eu olhava para as fendas da parede e podia ver seus rostos, espiando, vendo se não tinha ninguém acordado. Eu fingia que estava dormindo e esperava eles saírem para ver o que iam fazer, mas nunca saíram, acho que eram desconfiados demais.
O gato da minha prima não gostava de ficar no meu quarto, ficava eriçado. Acho que ele sentia os bichinhos da parede, mas era só no meu quarto. Ou seja, será que eles só viviam nas paredes do meu quarto? Nunca descobri ao certo. Eu já pensei uma vez em pegar um martelo e quebrar uma parte da parede para ver se achava eles, mas ficava sempre com medo de matar eles com isso. Então nunca fiz, mas sempre suspeitava.
A idéia nunca me desapareceu assim totalmente. Hoje não penso que em todas as paredes existam criaturinhas, mas pelo menos a daquele meu quarto tinha sim. Disso tenho quase certeza. Quando fui da Rosacruz uma vez tentei me comunicar com eles, telepaticamente. Fiquei umas horas parado em frente á parede tentando extrair algo dela. Cansado, depois de um tempo, coloquei a mão sobre ela e senti ela pulsando, como se tivesse cheia de vida. Desde então minha certeza sobre sua existência é patente.
Minha amiga um dia me veio com um livro proibido da Biblioteca do Exército, o irmão dela era militar, dizendo que a terra era oca, os maias haviam escapado para o centro da terra e ali viviam até hoje. Um colega meu achou ridículo isso, eu não. Ora, se existem gente na minha parede porque não existiriam pessoas debaixo da terra?

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Museu da Morte



Recentemente descobri que minha colega, Ludmila Puzzi, está envolvida na construção de um museu em São José do Barreiro, Vale do Paraíba. Bem, o tema do museu não é exatamente sobre a cidade, muito menos sobre a escravidão ou o café; é um museu sobre a morte. Senão me engano é o primeiro museu orientado para esse tema.


Bem, não é uma iniciativa gótica, embora eu ache que eles iriam adorar, mas uma proposta de estudar a mentalidade, como o homem encarou a morte ao longo da história. A inspiração básica aí seria o trabalho do historiador francês Phillipe Àries, mas também ao historiador João José Reis que estudou os rituais mortuários entre escravos e fazendeiros e reconheceu neles marcas da sociedade colonial. Aliás, o trabalho de Ludmila foi exatamente nessa direção ao enfatizar o Cemitério de Escravos de São José do Barreiro e as transformações que aconteceram em sua geografia e seu simbolismo no decorrer das mudanças sociais.


Uma das preocupações iniciais, segundo ela mesma revelou, seria o que expor no museu. Antes de tudo tenho que esclarecer que o museu se situará dentro do próprio Cemitério de São José do Barreiro, então uma excursão pelo local já é ponto fundamental da futura instituição. No entanto, necessita-se de mais materiais para enriquecer o acervo e poder demonstrar a mentalidade sobre a morte. Achei que seria interessante demonstrar a mudança da mentalidade através da arte, aliás objeto privilegiado da análise dos historiadores da mentalidade, sendo assim, temos um acervo quase infinito: desde poemas, contos populares (como os que falei aqui anteriormente), quadros, fotos (no final do século XIX era costume tirar fotos dos falecidos e deixá-las com a família e com os ateliês), esculturas, etc.


Ainda não há data para a instalação do museu, mas até lá ainda dá para contribuir e muito através de sugestões aqui, nesse link.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Aposentadoria

Corria pelo mato, olhando a cada passo desordenado apra trás, tentando ver se o rastreador continuava atrás dele. Estava muito escuro, só que via eram sombras, não tinha certeza se aquela ali era uma árvore ou o caçador. Na dúvida, continuava correr, com mais força ainda.
Um piso em falso, caiu do barranco. Desesperado tentou encontrar algum canto onde pudesse se esconder pelo menos. Tateando o chão se cortara com um caco de vidro ou pedaço de madeira, não sabe. É o fim: ele vai sentir o cheiro.
Sem outra idéia, deita-se no chão e fica imóvel com a esperança de que o rastreador não o veja. Esconde a mão ferida debaixo do corpo. Olha pra cima, para o alto do barranco, consegue ver perfeitamente o seu topo. Um chapéu, vê um chapéu aparecer. Lentamente a figura se mostra. Com uma capa um pouco esburacada nas pontas, o rastreador pára e observar a noite. O homem pode ver sua silhueta perfeitamente; sua frio. Ele coloca a mão no rosto, aperta alguma coisa, deve ser seu potente nariz de mentira. Ninguém sabe como ele funciona, só sabe que quando ele coloca essa coisa para funcionar sente o cheiro de uma paca a dois morros de distância.Eles são conhecidos por duas coisas: seu olfato e sua impiedade.
O homem sua, tenta diminuir o som de sua respiração. O rastreador meneia a cabeça. Olha para o fundo do barranco: pronto, foi achado.
Não há mais o que fazer. O impulso é fugir e é o que o homem faz. Levanta e dispara.O estampido seco, o homem cai no chão. Urra de dor, tenta levantar, mas o tiro foi bem nas costas. Não consegue. Rasteja um pouco. Ouve o som das botas do rastreador: estão ficando próximas. Mas desiste, não conseguirá ir muito longe. Vira-se e apela ao caçador:
-Por favor, senhor! Não me leve de volta... por favor (gagueja) me mata aqui!
O rastreador pega as mãos trêmulas do homem e as amarra. O levanta e coloca sobre as costas. O homem continua implorando, entre um grito de dor e outro. Chegam até á carroça metálica do rastreador. Joga o homem na caçamba e liga o motor, que mais parece uma velha tossindo.
-Me mata, senhor, por favor! O barão vai me maltratar por uns meses, ninguém merece morte loga do jeito que ele faz com os fugidos, ninguém merece... O senhor num sabe o que é aquilo!
A voz metálica finalmente responde ás súplicas:
-Eu só pego as pessoas, não mato.
-Mas, senhor, me mata, pelo amor de Deus! Eu te do tudo o que eu tenho, juro! Debaixo da minha cama, pode procurar, tem uma caixa cheio de conchas que eu guardei nesses anos todos. É sua! Só me mata antes!
O rastreador continua indiferente.
-Ninguém merece aquilo... meus parentes tudo morreram assim, depois de semanas na sala do matadouro, e a gente ouvindo eles gritar por nós... se tivessem matado eles antes não teriam sofrido tanto... por favor, senhor, me mata!
O rastreador começa a se incomodar com a ladainha.
-Se o senhor pudesse fazer uma pessoa que goste sofrer menos não faria? Eu sei que o senhor não me conhece, mas o que eu peço é pouco. O senhor diz que acertou errado e eu morri e não leva bronca do barão, é isso!
Silêncio.
-Por favor, senhor, eu não aguento mais tanto sofrimento, não aguento mais viver naquelas minas, ver minha gente sendo judiada. Se o senhor visse todo dia o que eu vejo também ia querer fugir de lá, mesmo que fosse morto.
O rastreador finalmente fala:
-Então porque não se matou?
-Porque eu tinha esperança de sair vivo de lá, mas agora, senhor... se o que me resta é a morte eu quero a morte. Tudo pra não voltar pra lá.
O rastreador pára a carroça de metal. Sai da frente e vai até a caçamba. Olha por uns instantes o pobre diabo. Pega a arma. Antes de se ouvir o tiro, o condenado diz baixinho, como um alívio:
-Muito obrigado...
O rastreador volta para a frente da carroça e liga de novo a máquina. Ainda não entendeu porque fez isso. Talvez seja o cansaço, afinal são mais de vinte anos ou mais fazendo isso. Quantos já não pediram o mesmo. É o cansaço. Parece que isso nunca vai acabar. Bem, talvez um dia isso acabe...


Um homem corre pela casa, esbarra na mesa da cozinha, deixa cair o vaso de flores que a enfeitava. Atravessa o corredor quase tropeçando. Entra em um quarto. Revira o armário, tenta achar a arma que costuma guardar aqui. Não acha. Será que ele a pegou? Vê a janela, tenta abrí-la. O som da porta fechando. Olha para trás e lá está a figura obscura, de chapéu, arma em punho e a capa toda esburacada (um pedaço ficou preso na porta). Desiste de arrombar a janela. tenta ser calmo e encarar o perigo.
-Mas o que você quer? Te pagaram para me pegar, né? Diga, quem pagou? Quanto foi? Você sabe que eu posso dar muito mais pra você não me pegar!
A voz metálica responde:
-Seu barão, não vim aqui pra te pegar não... vim aqui pra te matar.
O rosto do homem empalidece, está petrificado.
-Mas quem...
-Não tem ninguém não, seu barão. Tô fazendo isso por minha conta... vim pedir minha aposentadoria.
O tiro atravessa a janela, um corpo cai ao chão e outro sai pela porta, sereno... finalmente.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Antióquia

Ouço o som dos automóveis lá fora, cruzando os ares. Alguns totalmente irritantes, com seus pigarros intensos. Mas não me afetam muito, continuo comendo meu melão. De onde vim não tinham melões como esse. Não tenho certeza se é transgênico ou orgânico, porque não sei se os que comia era orgânicos ou transgênicos. Mas o que importa? está delicioso e pronto.
Senta um casal japonês na mesa á minha frente. Eles falam muito alto, mas finjo que não estou nem aí. Aliás, é impressionante a quantidade de asiáticos aqui; andando pelas ruas, dez em cada oito pessoas são chineses, coreanos, japoneses ou de qualquer outro país onde as pessoas tem olhos puxados. Maurice, meu amigo, disse que tinha a ver com a queda dos Tigres Asiáticos, a maioria deles vieram para cá então, onde havia mais oportunidade. É... quando a situação aperta não há nacionalismo que aguente.
Quem sou eu para falar deles. Eu mesmo saí de meu confortável, mas paupérrimo país para viver em Antióquia. Não que eu gostasse muito de meu país, mas era meu país, eu nasci ali. Pensando bem, acho que isso nem importa mais. Afinal, é apenas uma pedaço da crosta terrestre com pessoas em cima. De qualquer maneira, mesmo não gostando tanto assim de minha terra natal, decididamente não gosto de Antióquia também. É uma cidade enorme onde tudo parece ruína, quando você passeia pelas ruas é inevitável sentir um cheiro de óleo queimado e peixe, as pessoas só estão interessadas no seu dinheiro, dê você á eles voluntária ou involuntariamente. Que beleza há aí? Antióquia, ao meu ver, é o fim do poço da Humanidade.
E, veja bem, até uns trinta anos atrás era um monte de casas de alvenaria se diluindo á cada chuva ácida de verão. Se não fosse por esse enorme lixão no seu subsolo isso aqui continuaria sendo um deserto de veraneio. Antióquia... o maior ferro-velho da Historia.
Acabou o melão, que pena! Bem, pelo menos os japoneses pararam de berrar um para o outro. Odeio quando a pessoa termina de comer o que tem que comer e fica na mesa do restaurante sem fazer nada, olhando para o ponto cego das coisas, mas é exatamente o que estou fazendo agora. Se estivesse com a boca aberta seria o mesmo que ver um jacaré na beira do rio depois do almoço. É melhor me levantar e fazer algo, chega de tanta letargia.
Atrás da minha mesa está uma enorme janela, onde vão os casais de namorados (endinheirados, é claro) trocar beijos e admirar essa bela paisagem que é Antióquia. Mesmo com sua cor onipresente de ferrugem, a cidade tem um certo charme quando vista assim. Talvez seja algum efeito da janela, sei lá. A cada dia os edifícios crescem mais um metro e não é possível mais ver suas bases. A nuvens atrapalham a visão. Na realidade não são nuvens de verdade, mas gases tóxicos expelidos pelas fábricas e pelo lixo encrustado na antiga superfície da cidade. Vez ou outra algum maluco louco por adrenalina tenta descer até lá e voltar sem ficar inconsciente e acaba intoxicado.
Estranho... eu não tinha visto aquele prédio amarelo ali. Não é uma fábrica, deve ser mais um restaurante ou então um bordel. O alarme de meu relógio dispara, está na hora, tenho que subir e fechar o negócio. É um poço de chorume, estamos tentando vender para dois sheiks. Um já concordou com a nossa divisão nos lucros o outro ainda está tentando pechinchar. Tomara que ele tenha desistido se não vou passar mais uma semana nesse hotel. Se isso acontecer, pelo menos tenho os melões para me consolar.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Ave burocracia!

Burocracia é uma coisa fantástica, para não dizer outra coisa. Hoje, por exemplo, perdi toda minha manhã e parte da tarde esperando na fila de atendimento da faculdade e tentando explicar que eu existo (uma vez que o computador sacana alegava que não estava mais matriculado, na verdade, um conflito de grades curriculares gerou a pegadinha). Vejam só, daria até um belo contou ou no mínimo uma ótima tira.
Agora Kafka faz todo sentido...

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Brasil, país do steampunk

Vocês já vão entender o título. Estava eu parado no sinal quando pára ao meu lado um homem numa lambreta. Logo percebi meu erro ao classificar aquele veículo como lambreta. Na verdade o esqueleto lembrava uma lambreta antiga, mas á segunda olhada você via elementos de uma bicicleta (o guidon, a corrente) e outros de uma carroça (onde ficaria o assento do carona). Além disso, havia partes feitas de madeira, se não me engano de cerejeira, que lembravam gavetas, onde o dono deveria guardar ferramentas ou compras. Entre o guidon e o assento do motorista, ficava uma plataforma de madeira, onde ele estava apoiando um butijão de gás.
O sinal abriu e a pseudo-lambreta disparou deixando para trás um rastro de fumaça danado, o que me deixou em dúvida se era movido á gasolina ou á vapor. Se for realmente á vapor já sabemos quem será o patrono da futura Loja Steampunk Amazônica.
Mas o caso é seguinte: provavelmente invenções como essas não são nada raras e devem existir pelo Brasil todo, aliás. Ora, basta nos lembrarmos do Tião Coió e suas coiobólicas. O inventor brasileiro, aquele que vive aí por esse mundaréu entre o anonimato e a chacota da comunidade, une á criatividade á experiência, criando portanto obras que denunciam a sua herança, muitas vezes de artesão, com o que há de mais novo por aí, as novas bugigangas que surgem como moda. O resultado é uma coisa que se aproxima, fazendo uma pequena abstração, do steampunk, ao fundir passado e futuro, criando algo alternativo. Ora, uma lambreta-bicicleta-carroça (possivelmente á vapor) seria possível no início do século passado, por que não?
Nós que vivemos na "periferia" do mundo temos as melhores lições de steampunk nem sempre na História ou na Liteatura, mas no cotidiano, nos contrastes e personagens que habitam nossas cidades.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Dusek e o apocalipse

Nessa onda de "2012, fim do mundo" me lembrei no meio de tanta coisa relativa ao apocalipse que produzimos nos últimos anos da contribuição de Eduardo Dusek, a música Nostradamus.
Debochando da promessa de fim do mundo em 1999 feita pelo profeta Nostradamus, Dusek fala de um dia em que o mundo acabou (o que o narrador da música só percebe quando liga pra alguém e ninguém atende, afinal os prédios caindo e as pessoas correndo está dentro do normal).

Nostradamus
Eduardo Dusek

Naquela manhã
Eu acordei tarde, de bode
Com tudo que sei
Acendi uma vela
Abri a janela
E pasmei

Alguns edifícios explodiam
Pessoas corriam
Eu disse bom dia
E ignorei

Telefonei
Pr'um toque tenha qualquer
E não tinha
Ninguém respondeu
Eu disse: "Deus, Nostradamus
Forças do bem e da maldade
Vudoo, calamidade, juízo final
Então és tu?"

De repente na minha frente
A esquadria de alumínio caiu
Junto com vidro fumê
O que fazer? Tudo ruiu
Começou tudo a carcomer
Gritei, ninguém ouviu
E olha que eu ainda fiz psiu!

O dia ficou noite
O sol foi pro além
Eu preciso de alguém
Vou até a cozinha
Encontro Carlota, a cozinheira, morta
Diante do meu pé, Zé
Eu falei, eu gritei, eu implorei:
"Levanta e serve um café
Que o mundo acabou!"

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Brasil, país do futuro

Atrasados? Mas temos tv digital de graça! Arcaicos? Mas usam palm top nos censos do IBGE!
Francamente, acho que isso de "país atrasado" é intriga da oposição...

Afoturismos VII

O homem assina o contrato é levado até uma câmara onde recebe uma injeção. Depois levanta e volta á sala de onde saiu.
-Então é só isso?
-Sim.
-Quer dizer que agora eu sou imortal?
-Bem, a não ser que dêem um tiro na sua cabeça...
-Como assim?
-Veja bem, você assinou o pacote médio, quer dizer que você é imune á qualquer vírus ou bactéria, ou seja, você é imortal bacteriologicamente.
-Mas se eu for atropelado ou atingido por uma bala?
-Aí o senhor morrerá.
-Vocês não podem fazer nada?
-Nós temos o pacote plus que cobre precisamente acidentes.
-Quanto custa?
-12 milhões de conchas.
Pensa um pouco.
-Eu vou querer!
Passa o cartão.
-Pronto, agora o senhor tem o pacote plus! Jacques, leve esse senhor para o cofre!
-O quê? Como assim cofre?
-O senhor ficará trancado num cofre, á salvo de qualquer eventual acidente. Não se preocupe há uma ração lá e água esperando pelo senhor. Boa sorte!
Jacques pega o homem pelo braço e o carrega.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Dona Morte

O Dia da Morte, Wilhem Adolphe Bouguerau (1859)
A morte por definição é o fim da vida de um organismo. Todos os seres vivos morrem, mas só o homem é capaz de transformar esse acontecimento fisiológico em um ato simbólico.

A morte sempre atormentou o homem e não é nenhuma surpresa que as artes tenham se dedicado e muito ao tema. Desde as trovas medievais até os últimos filmes em cartaz, a morte está presente.

Ora, a Divina Comédia de Dante Alighieri, a lenda da fonte da juventude procurada por Ponce de León, O Último Selo de Ingmar Bergman, Sandman de Neil Gaiman e Incidente em Antares de Érico Veríssimo tem em comum quem mais senão a Dona Morte.

Mas o tema é muito vasto e quero me dedicar aqui a falar apenas de um nicho dela: os contos populares. Geralmente os contos populares sobre a Morte tendem a personificá-la como um figura esquelética, coberta por um manto e com uma foice (imagem baseada no personagem Anjo da Morte descrito na Bíblia e no Talmud) a quem todos tentam sempre enganar, mas nunca conseguem. O mais interessante nesses contos não são o final, pois sabemos que ninguém escapará desse implacável personagem (como, de fato, ninguém escapará mesmo), mas a maneira com que tentam iludi-lo.

Meu avô contava uma história na qual um homem pediu para a Morte ser madrinha do seu filho que ia nascer só para tentar ter mais intimidade com ela e convencê-la a não levá-lo. Bem, a Morte, sempre profissional, diz que o levará sim quando chegar a hora, mas dará um aviso. Tempos depois esse homem recebeu o aviso nos sonhos e, decidido a ludibriar a Morte, se barbeara todo, raspara o cabelo e se cobrira de trapos. Enfeitara seu empregado de modo a ficar parecido com ele e o mandara á cidade e se fingiu ser um mendigo. A Morte chega e é recebida pela mulher do cumpadre que diz que ele foi pra cidade e o visitante então, cansado, vê o mendigo e diz: Ah, então eu levo esse careca aí mesmo...

Há uma outra versão coletada pelo biólogo inglês Alfred Russel em suas andanças pelo Norte do Brasil na qual o cumpadre se disfarça de escravo, mas o final é o mesmo, é lógico.

Existe um outro no qual um homem faz um acordo com a Morte, pedindo para ela mandar um aviso para ele quando estiver chegando a sua hora. Esse homem então se entrega ás mais radicais aventuras e quando volta para a casa recebe a visita da dona Morte que veio para buscá-lo. Ele,revoltado, diz que ela não deu nenhum aviso. Ao que ela replica, todos os perigos que se safou desde o tubarão que viu até a avalanche que escapou, foram avisos suficiente, mas ele não considerou eles como tal. Então ele implora por mais um tempo e um aviso mais claro, ela, irritada, pede que ele escolha uma imagem então, ele fala de um baile onde estão tocando um sucesso antigo, cheio de pastorinhas. Ela aceita e sai, o homem, todo feliz, acha que está feito: agora é só não passar perto de casas de festa ou ficar na cidade em tempo de festa junina. Eis que quando vai sair na rua seu vizinho está fazendo uma festinha para a mãe, tocando músicas do seu tempo e com suas filhas como pastorinhas. A Morte chega e pega o homem pretensioso então. Há uma variante para essa história também, romanceada pelo escritor Malba Tahan sob o nome de Sob o Olhar de Deus, se não me engano.

Bem, exemplos existem e aos montes, mas também existem outras histórias onde, contrariando o senso comum, os protagonistas conseguem enganar finalmente a Morte. Existe um conto muito antigo, vi uma vez enquanto folheava um livro num sebo, onde um homem está determinado a matar a Morte e a chama para uma conversinha... munido de uma 45. Muito criativo realmente e válido, por que não?, afinal isso é literatura, ela pode e foi feita para desafiar a realidade.

Mas mesmo assim, confesso, que histórias como as duas descritas acima me cativam e muito, são uma grande prova da inventidade (dando uma de Odorico Paraguaçu) de nosso povo.

domingo, 1 de agosto de 2010

Da Iconoclastia

O Dr. Bento Aranha Castro levantara de sua cadeira e agora se dirigia a seu destino, o púlpito, onde falaria seu primeiro discurso como membro da Academia Brasílica de Ciências.
Colocara o calhamaço de folhas sobre ele, retira o pincenê e o repousa sobre a pilha de folhas. Um pigarro. Dois pigarro. Olha para a frente, avista aquele mar de acadêmicos, cientistas, todos encasacados, com imponentes cavanhaques. Inicia o discurso:
-Senhores, tenho a alegria de participar dessa academia que tem sido um dos maiores orgulhos para o desenvolvimento de nosso país. Quem me conhece sabe que não estou exagerando nos elogios, é verdade. Se não fosse por essa academia, criação de nosso prodigioso Imperador,não teríamos conhecido a Ciência no Brasil, a não ser pelos cientistas europeus que esporadicamente nos visitam. Sem ela nunca teríamos recriados portos modernos ou mesmo catalogado todas as espécimes animais e vegetais da região Amazônica. Sem ela não seríamos a potência que somos na América e no mundo.
Mas, senhores, eu me pergunto se conhecemos realmente a Ciência. Trabalhando nas escolas, ministrando aulas, eu vejo cada vez mais que não ensinamos Ciência, mas apenas repetindo-a, como se fossemos papagaios. Nossos melhores alunos são aqueles que nos dizem que o som não se propaga no vácuo e não aqueles que entendem porque o som não se propaga no vácuo.

Pausa, o discurso tem provocado já reações razoáveis nos rostos do demais membros da academia. Dr. Castro bebe o copo de água localizado perto de seu calhamaço. Novamente toma a palavra e continua o discurso.
-Senhores, o que quero dizer é que não fazemos mais Ciência, mas uma religião qualquer que se diz ser Ciência. Vejam bem, o conhecimento que conquistamos através dos anos hoje é adotado como dogma. Eu digo isso porque trabalho com a educação e na educação isso é muito claro. Os alunos tornam-se profissionais que não compreendem a Ciência, apenas a reproduz como um autômato. E para se tornar um "cientista" eles vêem que é preciso perder sua capacidade criativa. Ora, que Ciência é essa que nos castra a imaginação, combustível de nossos insights, e a compreensão, motivo primeiro de nos aventurarmos pelo mundo do conhecimento científico.
Se Kant disse que para ser um ser racional é necessário compreensão e sensibilidade, nós, senhores, não somos nenhum pouco racionais. Em matéria de racionalidade estamos na Idade da Pedra, por isso, conclamos a todos aqui a buscar dentro de nós nosso espírito iconoclasta, pois, só a partir da destruição desta catedral científica que criamos é que estaremos realmente á praticar a Ciência. Obrigado.
O Dr. Castro pega o calhamaço e o pincenê e retira-se do púlpito. A exigente platéia, após o susto inicial - na verdade, mais para uma cutucada na ferida que um susto - , leva alguns minutos para digerir a crítica e algumas tímidas palmas brotam da multidão de doutores. Dr. Castro não se intimida, já esperava essa reação. Ali estava ele, um iconoclasta sozinho tentando derrubar com um estilingue uma enorme catedral cheia de sacerdotes arrogantes e encasacados.

A Dança das Borboletas

A cidade estava tranquila como sempre é aos domingos. Entenda-se aqui tranquila como “sem engarrafamento”. Mesmo o mais desavisado observador conseguirá perceber que tudo está igual, tirando, é claro, o engarrafamento. Os outodoors continuam lá, as pixações, as bicicletas, os motoqueiros “ligeirinhos”, os botecos, as lojas, os mendigos. Está tudo do mesmo jeito de sempre. No entanto, não está.

Á duas semanas instalaram aquele que promete ser a salvação da cidade: o temporizador. Foram colocadas torres ao redor de todo o perímetro urbano. Discretas, mas estão lá; emitindo ondas eletromagnéticas. Sua função é bem simples: afastar toda possível frente fria perigosa da cidade, impedindo enchentes.

É uma tecnologia que já vinha sendo desenvolvida nos EUA, desde o furacão Katrina. Adotaram o sistema nessa cidade graças aos estragos das últimas enchentes. A cidade demorou quase um ano para se recuperar. Todos ficaram traumatizados de certo modo com o ocorrido. Mesmo com a promessa de bom tempo e nenhuma enchente a população ainda anda desconfiada. Mesmo obtendo sucesso nas cidades do Sul do EUA, todos estão meio céticos quanto ao seu poder, até o governo. Desconfiança compreensível, de fato, até típica de um povo que cisma muito fácil com a modernidade, mas depois de um tempo já se alimenta dela.

O fato é que até agora não ocorreu nenhum temporal daqueles. Na realidade, esse mês de outubro está muito seco até, nenhuma chuvinha. Que eu saiba o propósito do temporizador não é expulsar as chuvas, mas só os grandes temporais.

O sol está implacável, como sempre. Os carros continuam passando nas ruas. Tudo normal para um fim de semana; nada explodiu, não brotou um tentáculo em ninguém. Parece que o temporizador nem existe. No primeiro final de semana todos estavam apreensíveis, a cidade estava meio tensa. Mas agora, tudo tranquilo. Tranquilo demais, chega a dar tédio, o tédio de sempre, o tédio dos domingos.

Uma borboleta pousa no parapeito da janela. Azul, não pára de bater as asas. Outra borboleta. Três, quatro, seis borboletas. Milhares de borboletas! Parece que jogaram toneladas de papel picado sobre a cidade. Um enxame de borboletas chegando pela avenida, debruçando pela janela dá pra ver que elas vem do interior, pelo menos a maioria.

Há alguns dias eu percebi que estava vendo borboletas pela cidade, mas parece que de repente elas decidiram invadir a cidade.Elas se espalham pelas ruas. A maioria fica voando pelos prédios. Várias entraram pela janela. Tive que fechar imediatamente todas as janelas da casa. Elas entraram e ficaram dançando sobre a estante, ao redor da lâmpada – mesmo ela estando apagada. Depois foram caindo no chão, agonizando-se. Tudo aquilo era completamente surreal. Logo o chão do apartamento estava coberto de borboletas.

Não foi só o chão do apartamento que ficou coberto delas, as ruas da cidade também. Mesmo com muitas ainda voando freneticamente pelo céu, as ruas estavam cheias de asinhas batendo, desorientadas, formando um tapete vivo um pouco macabro.

Ninguém entendeu nada. Depois de duas horas não haviam mais borboletas dançando no céu, nas casas e lojas que invadiram. Tirando uma ou outra ainda agonizando, todas estavam estateladas no chão. As pessoas saiam na rua, olhavam para cima, procurando outra nuvem de borboletas loucas. Um senhor empurrava com sua vassoura pra fora de sua varanda um volumoso cardume desses insetinhos. Alguns curiosos examinavam seus pequenos corpos, tentando entender o que tinha acontecido, procurando pelo menos uma pista. Era borboletas de todo tipo, de todas as cores, a cor predominante no entanto era o rosa. Olhar as ruas era como olhar o solo coberto pelas flores de jambo. Seria muito bonito se não fosse macabro.

Depois de dois dias saiu a nota oficial: mudança no clima, o aquecimento global estava interferindo na orientação migratória das borboletas. O fato, na verdade, é que as ondas do temporizador não afastam só tempestades como atraem borboletas. Aquele enxame monstruoso de borboletas foi chamado para a cidade, e depois de uma viagem tão longa, exaustas e desorientadas, morreriam todas elas aqui, num triste espetáculo. Não demorou muito para associarem a dança das borboletas com o temporizador. Muitos protestos foram feitos no decorrer da semana, mas com o tempo eles foram diminuindo. Quando o chefe do programa disse que a única solução seria desligar o temporizador e deixar a cidade livre para as chuvas de novo, a maioria da população concordou que borboletas não valiam tanto. Hoje, “danças de borboletas” são comuns, já aconteceram cinco, e cada vez menos enxames aparecem. Esses mini-massacres não espantam mais ninguém, só aporrinham. Eu mesmo maldizo esses insetinhos quando interditam as avenidas e me atrasando para o trabalho por causa de enxurradas de borboletas. A verdade é que esse é o preço da segurança. A “dança das borboletas” é um efeito colateral para se construir uma vida urbana estável, sabe? Mas ás vezes lamento isso. O mundo ficou mais seguro, mas também menos colorido.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

As coiobólicas

Existem por todo o Brasil personagens que não devem nada á literatura ou mesmo á ficção científica. Tião Coió é um deles. Esse mineiro de Malacacheta inventou na década de 80 antenas parabólicas artesanais, além de tentar criar uma máquina voadora, mas essa é outra história. Até hoje as coiobólicas - ele fez mais de 400 - estão pelo sertão mineiro fazendo concorrência com as parabólicas "industriais".
Quem quiser mais informações sobre esse personagem fantástico é só acompanhar o curta de André Amparo, A Verdadeira História de Tião Coió (2003).
O curta aproveita muito bem o tema e nos apresenta um Tião (aliás, quem apresenta o personagem é ele mesmo) criativo, apaixonado por suas invenções, num misto de artista popular com inventor maluco. Tião Coió e suas coibólicas são um desses tesouros escondidos da nossa vida interiorana. Vale a pena conferir.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Flanando um pouco

Eu nunca tinha ouvido falar em flanêur, mas me pareceu que sempre soube o que era isso. Em todas as cidades em que morei, mesmo sendo um pouco sedentário, sempre gostava de andar pela cidade, simplesmente para vê-la.
Ainda não tive o prazer de fazer o mesmo em Manaus por conta da correria da mudança. Mas essa quarta, por causa de um enxame médico no centro da cidade, resolvi dar uma de flanêur. Bem, desci do ônibus na Leonardo Malcher, bem no começo da Joaquim Nabuco. Segui a Nabuco e percebi como era curioso a quantidade de floriculturas em uma de suas quadras. Quando olhei para o outro lado entendi o motivo: Casa Funerária.
Continuei, deveria entrar na 10 de julho e subi-la. Na sua esquina encontra-se de um lado a sede da Uninorte, toda em tons claros, azul e branco. Bem, na verdade tinha um pontinho meio deslocado ali: um mendigo deitado perto dos portões do estacionamento. Do outro lado da esquina está o enorme hospital da Sociedade Beneficente Portuguesa, cercado por um pequeno muro mais velho que o tempo. Descendo a 10 de julho chegamos a Getúlio Vargas, uma das avenidas principais do centro, toda arborizada e sempre cheia de carros. O nosso ponto fica logo lá embaixo, na intersecção com a 7 de setembro, a avenida principal das avenidas principais. Mas o consultório ficava mais acima. No caminho encontramos uma galeria de arte muito colorida e um cinema pornô bem discreto. O vigia era um velho que parecia estar eternamente pigarreando. Continuando nos deparamos com os fundos do famoso Teatro Amazonas e o Largo do Sebastião. Acho mais bonito até que o Teatro o chafariz na praça, cercado de monstruosas árvores. Na verdade ele não expele água como os outros, apenas possue uma pequena bacia ao seu redor cheia de água. O verdadeiro diferencial são suas esculturas, quatro naus, na verdade só suas proas, representando os continentes (África, América, Ásia e Europa). Tudo bem, esqueceram a Oceania, mas se a tivessem colocado onde ficaria a quinta nau?
O chafariz estava sendo visitado por um grupo de turistas. Todos tiraram suas fotos ali, com a exceção de duas garotas, bem vestidas aliás, que estavam preparando ainda o equipamento fotográfico. Eu pensei que estavam fazendo um ensaio fotográfico ali por causa da quantidade de câmeras e tripés. Até montarem tudo o grupo já tinha subido para o Teatro. Uma tirou a foto da outra encostada na borda do chafariz. Depois correram para alcançar o grupo. Eu pudi observar tudo porque parei para lanchar num dos banquinhos dali. Depois de acabar com o refrigerante e os salgadinhos me mandei. Cheguei ao consultório médico, ficava dentro de um prédio comercial, no quarto andar. Um lugar bem abafado, mas relativamente confortável. O exame demorou um pouquinho já que pude assistir duas novelas enquanto esperava, Pérola Negra e Esmeralda. Só faltou passar Canavial de Emoções. Bem, fiz o exame, sai do prédio e fui pegar o onibus, mas lentamente, como se quisesse aproveitar mais um tempinho no centro da cidade. Estava bem agradável lá, o tempo estava nublado e o clima ficara mais habitável.
Quando cheguei no ponto lá estava uma multidão de pessoas. Eu fiquei entre o senhor que parecia o Henry Fonda um pouco bronzeado e uma senhora com uma camisa azul que toda hora perguntava que horas eram. Depois de passarem mais de oitocentos ônibus por nós, finalmente chegou o nosso. E o onibus, que veio vazio, saiu de lá cheio. Estava um mormaço desgraçado dentro dele, que aumentava quando parava em algum sinal. Eu e todos ali estávamos contando os minutos, rezando para chegar o mais rápido que puder no nosso ponto.
Finalmente eu cheguei ao meu. Pensando bem, acho que o que me motivou a apreciar o centro da cidade foi o clima agradável de lá. Porque se tivesse o mormaço de sempre eu teria corrido o mais rápido possível para pegar o onibus e sair dali. Bem, o verão vem chegando e meus dias de flanêur com certeza estão contados, a menos que eu comprei um mini-ventilador portátil e um cantil com capacidade para 4 litros.

Glossário

(Lugones, a cólera dos deuses)
o título é uma clara referência ao filme do cineasta alemão Werner Herzog, Aguirre, a cólera dos deuses (1970). A história do filme gira em torno do verídico e insano mercenário espanhol Lope de Aguirre, interpretado por Klaus Kinski, queem um expedição descendo o rio Amazonas fez inúmeros massacres e assassinatos, incluindo do chefe da expedição e o de sua filha.
O nome do autor do suposto artigo é uma referência á dois personagens muito díspares: Arthur César Ferreira Reis, um dos maiores e primeiros historiadores amazonenses que já foi inclusive governador do estado durante a década de 1960, e Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judia que dedicou boa parte de sua obra á falar sobre a ética, a violência e o totalitarismo e ficou conhecida por seu relato do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmman onde cunhou o conceito de "banalidade do mal".
Agora vamos aos personagens: Victor Lugones pegou seu sobrenome emprestado do escritor argentino Leopoldo Lugones, conhecido por sua vinculação ao pensamento autoritário e fascista; o aviador Ulisses R. Figueiroa, referência direta ao personagem do livro de Homero, A Odisséia, enquanto Lugones encarnaria o papel de Poseidon, entidade que impede Ulisses de voltar para casa; Carranza era o sobrenome de um dos líderes da Revolução Mexicana, Venustiano Carranza, de origem liberal que possuía divergências contra Zapata; Perequê era o nome do filho de Ajuricaba, líder indígena que comandou uma confederação de tribos, entre elas a sua, os manaós, contra os portugueses por anos.
Caudilhos era como se chamava os líderes regionais da Região do Prata, geralmente eram de origem militar, diziam defender os interesses e a moral da população, buscando seu apoio pelo apadrinhamento. Os caudilhos promoviam muitas guerras entre si. Um dos maiores motivos da nação argentina não se integrar foi justamente o poder de caudilhos como Juan Manuel Rosa e Facundo Quiroga sobre Buenos Aires.

Afoturismos VI

Os grandes dilemas da ecologia demonstraram ser bem frágeis á espíritos práticos que pudessem solucioná-los tão facilmente como foram solucionados no nosso século. Em primeiro lugar, a grande quantidade de resíduos na biosfera. Cientistas criaram poderosos veículos movidos á resíduos, a qualquer um deles. E esse foi só o começo. Dentro de pouco tempo já existiam reatores de resíduos pelo hemisfério todo. Ou seja, resolveu-se o problema do lixo e da energia de uma só cajadada. E não só isso; recentemente, inaugurou-se novos modelos de habitação que utilizam como matéria prima nada mais que resíduos inorgânicos devidamente processados. Foi uma revolução na arquitetura.
Acabou-se a celeuma sobre a camada de Ozônio também. Um enorme contigente de nanorrobôs está instalado sobre ela e reconstrói a cada minuto os buracos provocados eventualmente. Uma vez reduzidos os buracos, a Antartida cresceu em extensão mais de 2km. Tivemos até um problema com isso, pois o nível do mar reduziu bastante, então quando chega o verão os nanorrobôs abrem um pequeno buraco, grande o suficiente para esquentar um pouco as calotas e inundar melhor as praias. Nada muito abusivo. Após o fim da temporada, eles reconstróem o buraco novamente. Simples.
Quanto a Amazônia. Bem, infelizmente a Amazônia original foi destruída na Guerra do Gado, no entanto, o mapeamento biológico e topográfico feito por anos por cientistas estrangeiros na região foi de grande valia, uma vez que foi possível clonar cada espécime da floresta, a partir das amostras colhidas por eles, e reconstruir a floresta em uma nova área, na África Sub-saariana.
Claro que algumas espécies, por serem desconhecidas, foram extintas, mas grande parte se salvou. E hoje temos um pulmão do mundo tão grande quanto o original.

A Visita

A campainha toca.
-Calma, já vou! Já vou!
A velha senhora abre a porta e vê uma silhueta á sua frente.
-Olha, me desculpe se eu te conhecer e não te reconhecer agora,bem. É que eu fiquei de trocar as lentes dos óculos á dois meses e to enxergando agora tudo embassado, sabe? Mas quem é você mesmo?
A Morte não sabe o que responder. Ora se disser seu verdadeiro nome é capaz de que ela feche a porta e se esconda dificultando seu trabalho mais ainda.
-Bem, eu sou...
-Ah, é o Ademar, né? O menino aí da portaria, do turno da noite, né? Agora que eu vi, você sempre costuma andar com essas roupas escuras. Me desculpa, meu bem, por não ter te reconhecido, viu?
-Não...
-Já sei, você veio buscar o panetone, né? O Arlindo me disse que você ficou de pegar e num pegou. Mas eu guardei, viu. Tá lá na geladeira! Entra aí!
A Morte, diante do convite, recusa veemente:
-Não, não!
-Que isso, entra aí, meu filho! Eu tava preparando mesmo o café. Senta aí e toma um pouco. Entra vamos!
-É que eu tenho que fazer mais coisas...
-E vai ficar aí de pé na frente da porta, que nada! Não precisa ter medo, eu sou só uma velhinha zureta. Entra aí.
E a senhora puxa pela mão a relutante visita para dentro de seu apartamento.
-Olha só não repara na bagunça,viu! Nossa, você tá frio, meu filho! Tem pressão alta? Ah, senta aí que vou trazer o café e o pão.
Assim que a senhora vai para a cozinha, a Morte solta um suspiro de cansaço, daqueles que se solta quando se prevê o trabalho duro pela frente. A Morte não gosta de criar muita intimidade com suas vítimas, isso acaba interferindo no trabalho. Depois você fica com pena e não consegue ceifar.Pensando melhor, ela acha que seria melhor acabar com tudo de uma vez. Se dirige para a cozinha, a senhora está na pia passando o café do cuador para a garrafa térmica, de costas. É o momento perfeito. Prepara para tocá-la e assim levá-la, quando a senhora subitamente vira.
-Nossa! Ah, você taí! Olha, menino, tá aqui o café. Você prefere puro ou pingado?
A Morte diante da solicitude da velha senhora desiste do plano.
-Puro.
-Eu também gosto de puro. Não é que eu não goste de pingado, é porque pingado já não paece café, pra mim parece mais é achocolatado, sabe? Senta aí na mesa que eu vou trazer o pão. Você gosta de pão de milho?
-É... Sim...
-Ih, meu filho, então me desculpa, só tenho pão francês.
-Não tem problema.
Enquanto conversam a senhora colocaum pano de prato sobre a mesa e o saco com pão sobre ele.
-Vou buscar agora o requeijão e o presunto, tá, meu filho?
-Tá certo...
A Morte, meio conformada, pega o copo com café e dá uma golada. Chega a senhora com o requeijão, o presunto e a faca.
-E tá muito forte?
-Não, tá bom.
-Se num tiver é só falar, eu faço outro.
-Não, não!
-Não é trabalho nenhum! Eu faço rapidinho. Eu até gosto, sabe, porque assim eu fico ocupada. O problema, meu filho, é quando você não tem nada pra fazer. Cabeça vazia, oficina do diabo. Já ouviu esse ditado?
-Sim...
A senhora corta seu pão ao meio e passa a faca parao convidado. Este pega lentamente seu pão e o corta. Depois de colocar presunto do seu pão a senhora lhe empurra uma fatia.
-Não quer colocar presunto aí?
-Não...
-Você não gosta de presunto?
-Gosto, mas vou colocar só requeijão...
-Você é que nem meu filho, ele não suporta misturar as coisas sabe? Quando eu colocava inhame e feijão e arroz pra ele, ao invés dele amassar o inhame, sabe, e comer junto com o feijão, ele separava num canto o inhame e comia o feijão e arroz primeiro pra depois comer o inhame.
Agora um silêncio. Ambos estão mastigando seu pão. A senhora come seu pão, como se tivesse fome, enquanto sua visita o devora lentamente, entre um golada e outra de café. Após terminar seu pão a Morte recolhe as migalhas que caíram para fora do pano e coloca num canto dele.
-Meu marido fazia isso.
-O quê?
-Ele fazia isso, meu marido. Depois que comia o pão ele pegava as migalhas e colocava no pano, depois ele pegava o pano e balançava ele fora de casa, pra cair as migalhas. Eel tinha uma criação de galinhas, aí quando ele fazia isso as galinhas já vinham tudo comer os pedaçinhos de pão.
A Morte coloca as mão sobre as pernas como se não fosse mais comer nada, a senhora está terminando o segundo pão agora.
-Eu gosto de pão assim quentinho. Vou lá na padaria cedo pra pegar os primeiros. Pão que fica muito tempo fora do forno fica meio duro, borrachudo, já percebeu? Eu não gosto de pão borrachudo. Ainda mais porque eu já não tenho muitos dentes, imagina eu perder mais. Ahah...
A ligeira gargalhada da senhora encontra companhia no também curto pigarro do convidado, como se fosse uma manifestação de apreço.
-Não vai comer mais não, meu filho?
-Não...
-Come mais, Ademar, você tá muito magrinho, meu filho!
-Não... É que eu preciso ir embora...
-Mas já?
-É...
-Fica mais um pouquinho!
-Tenho que trabalhar.
-Ah, tá certo... Quando a gente tem que trabalhar tem que trabalhar mesmo. Trabalho é o que faz você ser um homem, sabia disso? Trabalhar não é vergonha, é honra. Conitnue trabalhando, meu filho, você tá certo. Você não é que nem esse pessoal que vive aí nas costas dos pais gastando dinheiro em carro e drogas. Você tá certo! Eu não vou ficar te atrapalhando mais não, meu filho.
-Obrigado... pelo café.
-Ah, ia quase me esquecendo! O seu panetone! Peraí que vou lá buscar.
A Morte se levanta da cadeira e se dirige á porta, pára e espera a senhora voltar.
-Tá aqui! Guardei o maior deles pra você, viu, mas não fala nada pro Arlindo, se não ele fica com ciúme, viu? ahah
-Tá certo...
A senhora abre a porta, a visita sai, a senhora se despede:
-Até mais, meu filho! Bom trabalho!
-Obrigado.
A senhora tranca a porta. A Morte permanece no corredor do prédio, segurando o panetone. Mais um dia sem levar a senhora, mas a culpa não é dela. A senhora é muito simpática, o que poderia fazer? Recusar um café? Mas tem que fazer seu trabalho. A Morte estribucha um desabafo:
-Ah... eu não fui feito para isso...

quarta-feira, 28 de julho de 2010

A Cidade

Avisto ela. A cidade que se ergue no seio da selva será a mesma cidade sonhada pelos velhos pajés e caçada pelos aventureiros? Aquela cidade esquecida de onde a união de todas os povos simbolizará o novo mundo e o novo homem que de lá emergirá? Acho que sim. Veja, por entre suas imensas e prateadas colunas andam pessoas de todos os tipos, com os mais variados penteados, vestimentas e cores. Ouço os mais variados dialetos. Mas ao contrário do que parece, essa não é uma Torre de Babel, pois todos se entendem. Eles andam por seus corredores admirando cada pequeno detalhe da construção, conversam entre si, se alimentam em seu pátio, fazem trocas com seus moradores. É todo um universo admirável, reluzente, agradável.
Quem diria encontrei a famosa cidade perdida. Mas qual será seu verdadeiro nome. Me afasto um pouco, olho para seu pórtico. Leio: Amazon Shoping.

domingo, 11 de julho de 2010

O pesadelo de aço

O miniconto A Máquina de Leonardo Stockler, vencedor do Prêmio Bráulio Tavares de 2008, ressuscita um dos nossos pesadelos mais incisivos desde que a ciência se tornou a toda-poderosa no Ocidente: a máquina infernal.
A máquina infernal, em poucas linhas, seria todo e qualquer mostrengo de engrenagens dedicado a destruir tudo e impossível de ser impedido. Por exemplo, muitos vêem os nanorrobôs como máquinas infernais, pois acham que podem de algum jeito serem programados para destruir o mundo molécula por molécula e se reproduzirem ad eternum.
A máquina infernal perdeu espaço nas últimas décadas para outros pesadelos científicos tão assustadores quanto, ou mais, como a guerra biológica, mutantes genéticos, buracos-negro e etc. Mas Stockler revive esse pesadelo de aço em seu conto e quando digo revive é certamente a palavra certa. As palavras vão materializando esse monstro lentamente a ponto de no último parágrafo termos dele uma imagem pronta em nossa cabeça, percorrendo os canaviais, num quadro que não deve em nada á Hyronimus Bosch.
E ao lado da máquina infernal está seu inventor que, louco, se suicida de uma maneira suficientemente dramática. Vejam só, também está lá o arquétipo do cientista louco, mas se bem que é um cientista louco com complexo de culpa.
Interessante situar esse quadro apocalíptico em um canavial, pois isto lhe concede uma aura mais barroca. Eu diria até que se esse conto fosse uma canção certamente seria uma do Zé Ramalho. Não sei até que ponto pesou a experiência do autor nisso (se ele vem do Nordeste? E até mesmo se ele gosta de Zé Ramalho?), pois muito pouco sei dele, aliás, quase nada.
Um ponto que gostaria de ressaltar, entre tanto, é a capacidade descritiva do autor. De nada adiantaria o cenário, o monstro e o seu criador se não fosse a pena do autor, por sinal pontualíssima. Bráulio Tavares, em entrevistas, sempre disse que faltava á ficção científica, principalmente aqui no Brasil, mais pessoas que fossem dominadas pelo "demônio da palavra", bem Stockler foi um desses "possuídos", honrando o título do prêmio.

O Lado Sombrio da Luz

Sempre acreditei que a Ciência fosse a luz que iluminava as trevas do obscurantismo. Sempre acreditei que ela nos salvaria, nos salvaria de nós mesmos. Acreditava que chegaríamos a um ponto da História onde seríamos seres humanos melhores e civilizados, onde não existisse guerra ou fome. Como fui ingênuo, ingênuo e tolo. Agora eu vejo. Só lamento que tenha sido agora...
Quando criei a fórmula do gás sintético não pensava nisso, não pensava em nada além da aventura hercúlea do conhecimento de que estava participando. Para mim a Ciência era neutra, neutra e onipresente,como uma entidade divina e transcendental. Eu, como meus colegas cientistas, era um nobre sacerdote. Ledo engano. Estava mais para uma avestruz, com a cabeça enfurnada na terra.
De alguma maneira suspeitava das intenções do governo russo quando me ofereceram o projeto do gás sintético, mas deixei minha moral de lado, em nome da Ciência, em nome da luz, veja só! Por um tempo tentei me convencer de que não tinha feito nada de errado, que as decisões de utilizar o gás não eram minhas, mas a verdade é que eu sabia de tudo e fiz tudo. Não estava preocupado com as outras pessoas, mas com minha vaidade, meu objetivo de ser um renomado sacerdote da Ciência. O resultado está aí: 32 milhões de mortos na Criméia... Tenho 32 milhões de mortes no currículo...
O que será da minha vida de agora em diante? Viverei me explicando para todos que conheço? Me defendendo á todos? Assumindo minha culpa eme autoflagelando? Não sei, não sei o que fazer. Não aguento tanto peso nos meus ombros. A História me conhecerá como o açougueiro do gás. Não vou passar a imagem de inocente, pouparei a longa condenação dos tribunais. Essa noite tudo termina! Gostaria que terminasse comigo o gás, as mortes, tudo, mas não posso. Pelo menos eu terminarei essa noite!


Um tiro na escuridão do quarto silencia a angústia.

Minicontos

Síndrome de Estolcomo
A pesquisadora Anne Berting foi sequestrada pelo povo paluriano e mantida em um precário cárcere privado. Eles exigem que os navios pesqueiros não penetrem mais em sua terra. Depois de dois meses, as autoridades desistiram de negociar. Os palurianos foram então á capital mundial protestar. Entre os manifestantes presos estava a pesquisadora Anne Berting. Antes de entrar no camburão gritou: Viva o povo paluriano!!

Sorte
Arlindo tropeçou na escada, quebrou uma costela. Foi internado. Apesar de maldizer sua sorte, azar ele não teve: o prédio onde trabalhava desmoronou. A sorte é relativa.

Grandezas e limites da Física
Homem teletransportado de prefeitura na Filipinas para plenário norte-americano. Física explica: isomorfismo quântico.
Fracassado analista de sistema casa-se com a Miss-Verão. Física não explica.

Afoturismos V

A estátua da liberdade foi leiloada. Sim, para os chineses. Acontece que os monumentos são muito trabalhosos e a arquitetura hoje já superou essa fase das esculturas concretas, as virtuais e os hologramas são muito mais baratos e práticos. Os monumentos se tornaram obsoletos. Obsoletos não, raros, extravagantes. Só quem é realmente muito rico tem uma boa coleção de monumentos e obras do tipo. Por exemplo, o milionário australiano Eike Trump é um dos maiores colecionadores do mundo; além de contar com as pirâmides de Zizé e o Arco do Triunfo, ele adquiriu recentemente a Muralha da China, para desgosto dos chineses.

sábado, 10 de julho de 2010

LUGONES: A CÓLERA DOS DEUSES

Lugones: a Cólera dos Deuses


Arthur Reis Arendt
(artigo da revista de cultura Aymoré, vol. 54, jul-ago, 1937).

Encontramo-nos em pleno século XX, saídos do auge da tecnologia e da ciência moderna, e, no entanto, a maioria de nosso planeta ainda se configura em incógnita. Não precisamos ir muito longe para darmos um bom exemplo: a região norte, principalmente a província amazônica. Nós nos vangloriamos de ser um dos países mais fortes da Liga Panamericana, mas o poder central ainda não pisara nessa região. A Amazônia ainda nos é um enigma.

Descoberta pela expedição de Alfredo Pacheco Favela em 1545 e então batizada como Sertão da Água Doce, a região nunca foi totalmente colonizada. A ocupação portuguesa encontrou enormes problemas como o clima, os insetos, as doenças tropicais e as guerreiras indígenas conhecidas como Icamiabas, responsáveis pelo rebatismo da região como Terra das Amazonas. Em vista de todos esses problemas a empresa colonial portuguesa abandonou a região em 1715, desde então o sistema econômico predominante localmente tem sido o contrabando e o sistema político uma rede pulverizada de chefes regionais, ligados á pequenas tribos - a única exceção aconteceu com a Confederação Baré, quando as tribos do Vale do Amazonas se uniram sobre a liderança de um tuxaua (chefe) conhecido como Perequê para combater os contrabandistas, mas com sua morte ela se dissolveu.

Em 1875, a situação muda radicalmente. O governo central da República de Pindorama, com medo de perder suas províncias para seus vizinhos, inicia um processo de centralização, nomeando para cada província um comandante militar com poderes quase supremos, cuja missão seria assentar as bases administrativas e político-militares nas províncias e defendê-las, simultaneamente. Esses comandantes ficaram conhecidos como caudilhos. O caudilho designado para transformar a Terra das Amazonas na Província da Amazônia era o general Victor Lugones.

Com uma ficha impecável, o general Lugones era um verdadeiro intelectual, um homem dado á reflexão e um hábil estrategista. No entanto, o relato do aviador e aventureiro Ulisses Ramirez Figueira, que visitou a região em 1893, encontra no comando da província o general Lugones, mas um Lugones diferente. Um Lugones louco, imprevisível e brutal, responsável por milhares de massacres. O que terá acontecido com o caudilho Lugones? Será que a selva terá o transformando? Mas como?


I

Antes de respondermos a essas intrigantes perguntas que certamente iluminarão nosso conhecimento sobre a Amazônia, precisamos apresentar melhor nosso objeto de estudo, o general Victor Lugones.

Victor Vélez Lugones nasceu em 22 de outubro de 1834, na pequena cidade de Pouso dos Guaianazes, no interior da província fluminense. Filho de um comerciante, imigrante espanhol, com uma costureira nativa, a única possibilidade de uma boa formação e ascensão social para Lugones era o Exército. Por isso, com 8 anos completos entrou para a corporação. Após completar seus estudos fundamentais, Lugones, um rapaz ávido pelo conhecimento, decide continuar estudando, se aprofundando não somente nas técnicas militares (estratégia, história da guerra, etc.) O jovem oficial completava seus estudos na Academia com sua curiosidade; frequentava as mais obscuras livrarias e sebos á procura de livros que lhe interessasse, principalmente os de filosofia.

Foi num desses sebos que encontrou com sua futura esposa, Ana Maria Rândi, instruída jovem de uma família tradicional de São Gabriel de Batatais. Os dois discutiram muito sobre a natureza humana e a realidade das coisas, mas não demoraram muito para perceberem que estavam apaixonados. Em 1864, Lugones, promovido á coronel, casa-se com Ana Maria, depois de um ano de noivado. Eles tem 3 filhos: Alberto, Solano e Victor. Victor, no entanto, morre no parto, deixando dona Ana Maria inconsolável por meses.

Curiosamente, na mesma data eclodem as Guerras Ítalo-Turcas e Lugones, agora alçado ao generalato, é chamado para defender a frente norte do estreito de Gilbratar. Sua missão é não deixar passar as eventuais tropas armenas. No entanto, Lugones enfrenta muita resistência e desobediência de seus subordinados. Em razão disso aplica duras penas neles, como surras de chibata. O infeliz episódio eclipsou um pouco a promissora carreira do general. Seu amigo dos tempos de Academia, Francisco Salinas, no seu livro de memórias revela que Lugones voltara muito abalado da guerra; mesmo não tendo participado de nenhuma batalha decisiva, estava muito distante, tão marcado que estava pelo episódio da chibata.

Alguns anos depois Lugones retomou seus estudos, dessa vez na área conhecida como Psicologia de Massas. Publicou dois admiráveis estudos: Da Ordem (1873) e O Imaginário das Massas(1874). No primeiro analisa a idéia de poder não como se fosse algo imposto, mas que emanasse das pessoas, ou seja, que o poder resultaria da vontade de dominarem e serem dominadas. Já no segundo estudo fala de arquétipos presentes no imaginário social que podem ser explorados por um governador sábio para criar a paz social.

Atraído por seu amigo Salinas, Lugones aceita trabalhar no Ministério da Guerra como chefe do gabinete de estratégia, criando novas maneiras de repressão. Maneiras essas que foram rapidamente aplicadas pelo gabinete de segurança nas lutas por terra na província de Caburé. Caburé foi uma grande mancha na carreira de Lugones; seus métodos de contenção foram responsáveis por mais de 20 mortes de lavradores inocentes, entre eles crianças, que ocupavam o bairro de Santo Antônio de Leverger.

Em 1875, o governo central lança o Plano de Integração Nacional. Seu amigo no Ministério da Guerra, Salinas, indica seu nome para a comissão responsável pelo projeto. Há que se considerar, no entanto, que o governo e a corporação estavam um pouco descontentes com toda a fama de Lugones no momento, portanto, sua participação no projeto pode ter sido um meio de afastá-lo dos holofotes. Mesmo com medo da opinião pública á seu respeito, tanto o governo como o Exército reconheciam em Lugones um competente líder, com um futuro promissor no Exército , quiçá na Presidência da República.

Pouco antes de partir acontece mais uma tragédia: Ana Maria vem a falecer. Salinas nos revela mais uma vez em suas memórias que a morte do filho caçula lhe comoveu muito. E nos anos em que seu marido esteve participando da guerra e do gabinete de estratégia, ficou muito sozinha. Ao saber da notícia da nomeação de Lugones como caudilho responsável pela Terra das Amazonas, prevendo as dificuldades que viriam a seguir, se matou. Um episódio tão curioso quanto trágico, abordaremos ele com minúcia posteriormente.

Lugones, em vista da morte de sua mulher, foi um dos últimos caudilhos a partir em missão. Seu efetivo consistiria em um batalhão de soldados, duas esquadras aéreas e um dirigível fortemente munido de canhões e metralhadoras. Todo efetivo contava com a figura do chefe-médico, responsável pela equipe médica da tropa, o mecânico, um grande entendido em todas as máquinas que deveria consertá-las ou aprimorá-las quando possível, e um conselheiro militar, com a função de supervisionar o trabalho do caudilho. O chefe-médico da equipe de Lugones era o Dr. Roberto Lameira, eficiente comandante do Hospital da Base de Canguçu, seu mecânico era conhecido informalmente como Ferrari e seu conselheiro militar era o experiente e histórico marechal Enoch Carranza, grande nome da pacificação da República do Prata.

A partir daqui a vida do general Lugones é envolta em mistério e em certo desconhecimento. Nossa fonte a partir de agora será o livro de Ulisses Ramirez Figueiroa, Odisséia Amazônica. O autor foi recrutado pelo caudilho depois que este descobriu suas qualidades na aviação. No tempo em que esteve trabalhando para o caudilho ouviu muito a respeito de sua empresa amazônica por meio de seus colegas de trabalho. Segundo os mais antigos, quando chegaram aqui o contrabando dominava a região. Foram anos de guerra, perderam muitos homens. A situação se inverteu a partir do momento em que Lugones é aclamado como "tuxaua" pelos Barés que enxergam na figura imponente do general um herói reformador tal como Perequê. Os contrabandistas eram inimigos da maioria dos Barés, bem como as Icamiabas. Lugones conquistou o apoio dos Barés e com isso sua ajuda na luta contra os contrabandistas. Em pouco tempo, o cartel de Aguirre saíra da Amazônia.

Devido a falta de reforços expedidos pelo Ministério da Guerra á missão, Lugones toma uma decisão difícil: firma um contrato com os contrabandistas que acabara de expulsar, em troca de algumas drogas da selva receberá deles bens de consumo e armas. O próximo passo seria unificar todo o Vale do Amazonas através da Confederação Baré. Os maiores inimigos desta expansão foram as Icamiabas que foram quase totalmente exterminadas. A partir do Vale, Lugones se expandiu pela Bacia Amazônica, seguindo o curso dos rios. Estabeleceu torres de vígia, abriu campos no meio da selva, construiu pequenas cidades ao longo de seu domínio e construiu sua base logística numa árvore centenária no interior da selva.

Ulisses posteriormente deserdou, tendo de se refugiar entre as populações ribeirinhas. Uniu-se a um movimento de resistência, entre tantos na região, e ouvia relatos terríveis sobre os massacres promovidos pelo caudilho. Um deles, o da tribo Waimiri, ficou conhecido pelo grau de crueldade: as crianças foram presas em uma oca onde atearam fogo. Dizem que, depois disso, Ferrari também deserdou as forças armadas.

Em 1894, um ataque áereo á base de Lugones, do qual participou Ulisses, destrói sua torre de operações, matando o junto. Após sua morte, o Estado amazônico criado por ele se fragmentou. A Confederação Baré herdou, no entanto, sua infra-estrutura e nos anos seguintes tornaria-se o embrião de um novo Estado amazônico, o que conhecemos hoje.

II
Depois de tomarmos conhecimento da vida dessa misteriosa figura, cabe nos agora algumas observações.
Primeiro, a morte de sua mulher. Em entrevista com o marechal Francisco Salinas, descobrimos, extra-oficialmente, que ela fora assassinada. Desconfiado do ocorrido o general mandara fazer uma autópsia que revelou morte por estrangulamento e não por ingestão de remédios como dissera Lugones. O resultado da autópsia saiu após a nomeação de Lugones e sua consequente partida, portanto, já era tarde demais para prendê-lo. Acreditamos que o marechal Salinas tenha se chocado com o ato do velho amigo, como transpareceu em nossa conversa informal.

A prisão de Lugones não foi efetivada por causa da mudança de gabinete. O presidente J. Barros renunciara dias depois e assumira o vice Carlos Luiz que começara uma mudança radical no Estado Maior e consequentemente no Ministério da Guerra, temendo um golpe militar. Os pedidos de prisão de Salinas não foram levados em consideração pelo novo Ministério, tão interessado ele estava em afastar membros conservadores da caserna que a prisão de um ilustre oficial poderia gerar mais burburinho. Nos anos seguintes a missão Amazônia foi esquecida pelo gabinete, o que explica os reforços que nunca vieram para Lugones.

Ora, esse surpreendente fato nos mostra que o general já havia mudado antes de entrar na selva. Os motivos que levaram a matar a esposa ainda nos são desconhecidos, mas podem ter origem no trauma da guerra. Um intelectual como ele, tão interessado no diálogo e na reflexão, deve ter se chocado com a anarquia da guerra, aspecto que foi sua principal preocupação nos anos seguintes, como evidenciam seus artigos e estudos sobre o problema da indisciplina.

Outro ponto interessante: Ulisses em seu relato nos fala que a figura de Lugones era temida por todos, desde os ribeirinhos até os oficiais de seu mini-Estado Maior. Conhecido como "o tuxaua", "generalíssimo" ou ainda "demônio caraíba" entre seus inimigos. De onde vinha esse temor? O piloto nos fala que os Barés vinham nele um herói reformador, uma espécie de semi-deus que controlava máquinas incríveis como o potente dirígivel. É possível que sua crueldade tenha contribuído também para essa imagem de herói reformador ao ser impiedoso com os inimigos.
Ulisses nos fala ainda do temor vindo dos próprios oficiais: "O interessante era que a maioria dos oficiais, mesmo os generais, temiam sua pessoa. O motivo era principalmente sua imprevisibilidade. Diziam que mudava de planos no meio da noite ou criava novos do nada e os punha em prática o que exigia uma poderosa organização dos oficiais, pois, uma vez não efetivados os planos, expurgos eram cometidos".
O que aqui temos senão uma autocracia; a figura do caudilho dominava toda a vida da população, era amado ou odiado por todos. O que explica a desintegração de seu império após sua morte, tão centrado estava a organização político-militar em sua pessoa que não sobreviveria sem ele.

Mais uma vez recorremos a Ulisses: "Na verdade era assustador o modo como ele parecia totalmente insano. Mais assustadora ainda era como ele tornava-se rapidamente extremamente lúcido, o que me dava a impressão de que fingia saber o que estava fazendo, que fingia estar louco (...)". Esse é um dado muitíssimo curioso: fingir estar louco. Bem, é comum ao neurastênico espasmos de lucidez, no entanto, é interessante também avaliarmos a hipótese de Ulisses. Por quê? Talvez a imprevisibilidade e loucura de Lugones sejam intencionais. Explico: Lugones dedicou boa parte de sua vida a tratar a indisciplina e todos sabem que a selva tropical é um lugar suscetível á desobediência e a marginalidade, melhor exemplo disto está nos episódios coloniais de sua história, talvez ele tenha descoberto o potencial do medo, através da imprevisibilidade, na construção da disciplina.

Outro fato interessante é o conteúdo ideológico do caudilho. Tanto Ulisses como Salinas diziam que Lugones tinha uma espécie de imponência, do tipo daqueles homens que tem certeza de seu objetivo. Ulisses nos fala que nos poucos discursos que ouviu dele podia-se ver seu ideal em transformar a Terra das Amazonas numa província de progresso e civilização. Um progresso e civilizaçaõ que deveria passar pelo extermínio dos dissidentes e a destruição da selva. Mais uma vez, volta a imagem de herói-reformador, mas de um tipo diferente, um herói-modernizador; igualmente implacável e mítico, uma espécie de semi-deus, porta voz dos deuses do Progresso e da Ciência. É irônico, no entanto, que para construir a civilização na Amazônia Lugones tenha se valido da loucura, da brutalidade e do medo.

Pessoas que se consideram acima do Bem e do Mal, por causa de seus ideais transcendentais, sempre desrespeitam o mundo sensível, o mundo das práticas, do cotidiano, renegando a ética para debaixo do tapete. Analisando pelo prisma do idealismo, tlavez Lugones seja uma dessas pessoas. Acreditar estar acima de qualquer julgamento pode ter lhe dado o aval para seus atos deploráveis, seja em nome da disciplina seja em nome do Progresso. Assim sendo, Lugones seria um dos monstros produzidos pela razão, como diria o grande pintor Francisco Goya.

III
Gostaria de ressaltar que o que foi exposto logo acima não passa de conjecturas; nunca saberemos com certeza o que terá passado pela cabeça de Lugones, nunca saberemos como ele se transformou nesse ícone de maldade e insanidade. Pode ser que a selva tenha um peso considerável nessa transformação, pode ser que não. A verdade é que nunca saberemos, porque nunca descobriremos, é o que me parece, os mistérios da alma humana. Falar de Lugones não é somente uma aula de História, uma história vergonhosa com certeza. Falar de Lugones é falar da própria alma humana. Nossa alma de certa forma é uma imensa selva tropical, quase insondável, onde habitam monstros temíveis e maravilhas incríveis. Mesmo com toda a tecnologia que dispomos não é possível ainda conhecê-la em todo, somente parcialmente.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Expediente

Bem, depois de postar alguns contos, chegou a hora de uma paradinha para inflar um pouco meu ego: Romeu Martins, um dos porta-vozes do steampunk nacional, no seu ótimo blog Cidade Phantástica, acabou de fazer um post sobre o nosso querido blog.
Isso mesmo. O reconhecimento veio cedo demais! E eu que planejava encher esse blog de contos e crônicas e depois deixá-lo aí por uns anos, para valorizar...
De qualquer maneira eu gostaria de fazer um esclarecimento: Cláudio Carqueija é apenas um pseudônimo. Tcharan!! Meu nome verdadeiro é Vinicius Alves do Amaral e tenho já uma página na rede AoLimiar com o mesmo nome do blog, onde também coloco meus contos, aforismos e críticas.
Ah, e já ia quase me esquecendo! Surgiu a hipótese de fazermos uma Loja Steampunk Amazônica. Bem, fiquei entusiasmado com a idéia, mas ainda preciso de um pouco de tempo para pesquisar mais interessados no assunto aqui em Manaus. Afinal, o Incrível Exército de Brancaleone não era feito de uma pessoa, mas de cinco bravos cavalheiros!

Glossário

Achei necessário aqui explicar um pouco sobre os elementos que me serviram de inspiração para o conto Entre dois mal ou a segunda viagem dos Acutsu.
Em primeiro lugar, os Acuntsu. Acuntsu é o nome de uma obscura etnia indígena que vive na fronteira do Amazonas com Rondônia, conhecida pelo seu culto á Kiantô, a cobra arco-íris.
Não existe, no entanto, nenhuma entidade conhecida como Ururã no folclore amazônico(aliás, ao contrário das cobras, poucas são as lendas relativas á jacarés, como lembra Câmara Cascudo). A idéia veio de uma pouco conhecida lenda do interior do Rio de Janeiro, a lenda do Ururau, um jacaré brabo de couro impenetrável que uns dizem virar gente.
Caraíba era como os indígenas tupi chamavam o homem branco. A palavra também significava em algumas tribos "profeta", mas usei o primeiro significado nesse conto, como vocês devem ter percebido.
Bem, a inspiração para construir esse conto veio principalmente do trabalho de Neil Gaiman,no que tange ao paganismo. Seus personagens fantásticos estão sempre muito envolvidos com os seres humanos,como se fossem parte de uma novela, ao invés de ficarem no Olimpo, por exemplo. Achei interessante adaptar um pouco da fantasia Neil-Gaimaniana, por assim dizer, ao universo indígena. No entanto, no final das contas, não achei que os seres fantásticos do meu conto, principalmente Kiantô, fossem tão envolventes ou presentes. Bem, mas não se pode acertar sempre...

Entre dois mal ou a segunda viagem dos Acuntsu 2

Amanheceu. Os guerreiros que foram mandados para atrapalhar a vinda dos caraíbas acabam de voltar, meio sujos e afobados. Vão falar com Pindarô, dizer que são muitos caraíbas e eles já deram jeito nas toras que derramaram no rio. Pindarô não demonstra medo, por fora. Manda acordarem todos. As mulheres e as crianças vão pegar as armas que ficam no barracão e se esconderem no meio do mato. Todos os guerreiros ficarão aqui, esperando o inimigo. A tática vai ser simples: todos ficarão escondidos, atrás das ocas, dando a impressão de que a taba está vazia, pra fazer uma emboscada nos caraíbas. É um bom plano, mas todos sabem que os caraíbas tem muito mais homens e armas.
Apreensão no rosto de todos. Só de Apinaã que não. Apinaã está angustiado, a culpa cai nas costas de Apinaã. Pindarô percebe e por isso fica perto de Apinaã esperando a oportunidade de perguntar o porque disso. Quando todos estão em posição, Pindarô pergunta:
-O que te aflige, meu filho?
-Nada, Pindarô.
-Pindarô sempre teve visão muito boa e tua angústia é tão visível pra Pindarô como o céu azul.
Apinaã considera: de qualquer forma ele terá que contar ao velho. Que seja agora, já que o monstro pode reclamar seu pagamento muito cedo.
-Pindarô, eu fiquei preocupado com os caraíbas... então eu sai um dia e...
Os olhos de Apinaã se cerram:aparece uma nuvem de fumaça perto da curva do rio. São so caraíbas chegando. Momento de apreensão. Só se ouve o barulho dos motores.Pindarô reza dentro de si, pedindo força pra lutar.O nariz do barco encouraçado aparece na curva do rio. Os guerreiros todos respiram fundo, como se faz anbtes de mergulhar. A arfada dura o tempo do barco aparecer por inteiro. Logo atrás aparece outro e mais outro... São quatro barcos.
Todos cheios de gente, cheio de caraíba armado.
O primeiro barco atraca no barranco, desce um punhado de caraíbas. Eles vão adentrando a taba, receiosos, procurando guerreiros. Uns acham que todos fugiram, outros não.
Os guerreiros avançam. O primeiro sai de trás da oca de Pindarõ e acerta a garganta de um caraíba e desde já começa um tiroteio danado. Apinaã avança e pega dois caraíbas: um com a lança e outro com dois tiros de sua garrucha. Pindarô é bom de tiro, já acertou uns cinco. A chuva de tiros é braba. Muitos guerreiros já tombaram, a começar pelo que iniciou o ataque.
Aquela carabina grande presa na frente do barco demora a carregar, mas quando atira abre buraco no chão que nem caminho de sucuri grande. Eles tão terminando de carregar ela. Mas não dá tempo. O barco vira!Os caraíbas caem todos na água.
Barco virar no raso é muito difícil. Os homens dos outros barcos não entenderam nada.Do rio sai uma boca florida de dentes e engole um punhado de caraíbas como se fosse água.
O barco da frente começa a atirar. Não adianta. Vem o bichão e pega o barco com os dentes e vira. O barco logo atrás dele leva uma rabada, partindo-se ao meio.O último tenta fazer a curva, mas é lento demais, o monstro joga a cabeça pesada de tudo contra a proa do barco, afundando-o.
O tiroteio acabou depois do segundo barco ser destruído, depois disso muitos caraíbas fugiram pro mato. Alguns ficaram parados, vendo tudo, chocados. Chocados também estavam os guerreiros, menos Apinaã. Apinaã só pensa em como cumprirá com seu acordo agora.
Do fundo do rio emerge aquela cabeça cascuda e o bichão, com os olhos pra fora d'água, brame:
-Macaco pelado!... Macado pelado! Já fiz minha parte do trato, agora quero teus filhotes e tuas virgens!
A voz assustadora fez um bocado de guerreiros cair no chão. Pindarô, mesmo assustado e cansado, fica de pé, tentando entender a fala do monstro.
-Monstro, quem é tu? É Ururã?
-É, macaco velho... é Ururã... e quero meu pagamento!
-Que pagamento?
Vem um ronco tenebroso do monstro que é na verdade um pigarro. Então ele responde:
-Um dos teus macacos sem rabo me fez um trato esses dias... queria que eu matasse caraíbas... se eu matasse ia receber 10 de teus inocentes, filhotes e virgens... Eu matei caraíbas, agora quero minha parte!
Pindarô demora a descobrir quem fez o trato, mas quando vê Apinaã de cabeça baixa, entende tudo.
-O homem que fez o trato com você, demônio, não manda em nada aqui! Esse trato não tem valor!Não vamo te dar ninguém.
já sabendo a reação do monstro, Pindarô começa a se afastar. Ele sabe que o bichão é grande demais e não tem chance de pegar eles correndo na mata fechada. Outro ronco, dessa vez de raiva. O monstro se atira pra margem. Metade do corpo fora d'água. Tenta puxar o corpo truculento e reluzente pra terra, mas as patinhas gordas não conseguem. Abre a bocarra e arregaça os dentes, os olhos vermelhos se colorem de ódio. Os guerreiros tudo fogem. O bichão não consegue segui-los, afunda no barranco e depois de lutar por alguns minutos contra a gravidade, desiste e volta ao rio.
Os guerreiros correm na mata. Á certa altura se encontram com suas famílias e incitam elas a correrem também. Todos correndo na mata. Ninguém entendendo nada. Quando chegam numa trilha aberta pelos kadiwéus para visitar seus "irmãos", param, tomam fôlego. No entanto, nenhum guerreiro quer contar o que aconteceu. Um deles, depois de respirar um pouco, explica para o resto da taba sobre o monstro. Pindarô, agora enfurecido procura Apinaã, não acha, ele não está mais aqui.
-O que vamos fazer agora, Pindarô? Se a gente entrar no rio o monstro pega a gente, sea gente seguir essa trilha vamos chegar perto da taba dos caraíbas.
Pindarô pondera:
-O jeito, meu filho, é falar com Kiantô.
-Mas Kiantô só aparece com chuva, Pindarô!Vamos esperar chover?
-Isso mesmo...
A tribo toda dormiu na trilha. Ficava sempre dois vigias acordados. Apinaã estava ali, mas sempre afastado do grupo de forma a não ser visto. Apinaã voltara a desonrar seu povo. Não poderia estar mais envergonhado. Uma voz na sua cabeça dizia que tinha feito a coisa certa, que 10 poderiam morrer para salvar um povo inteiro. Apinaã tentava se justificar, mas não adiantava, ele sabia que não ia parar por aí. Mais caraíbas viriam e eles teriam que alimentar o bichão sempre para ele protegê-los. Do que ia adiantar perder metade da tribo nos dentes do jacaré? Tinha errado mesmo.Apinaã poderia voltar ao rio e pedir pra ser comido pelo bicho, findando o acordo, mas também não adiantaria. O monstro o devoraria e continuaria a perseguir a tribo. Apinaã colocou seu povo entre dois mal.
Chegou outro dia. Nada de novo, todos continuavam angustiados. Dois guerreiros foram caçar pra alimentar a tribo. Pegaram três catitus. No meio do almoço, pingos. Começa a chover aquela chuva fina. Do tipo que Kiantô adora.
Depois de um tempo dá pra ver as costas de Kiantô no céu. kiantô aparecia no céu quando dia de chuva desse jeito, com o corpo em forma de arco, mostrando suas costas com todas as cores da floresta. Nessa hora que o chefe falava com ela, pedindo ajuda, conselhos ou louvores. Pindarô pôs-se a falar com Kiantô:
-Kiantô, caraíbas querem nos escravizar, Ururã, demônio do rio, quer nos matar. Não sabemos o que fazer. Por favor, nos ajude!
A voz de Kiantô era como o som da chuva, mas calma e pausada.
-Vocês não tem com o que se preocupar. Kiantô trouxe vocês pra essa terra e Kiantô vai achar outra terra pra vocês. A terra que vocês precisam está no Rio da Água Dourada, bem no começo dele. Lá Ururã não entrará e nem caraíbas, porque eu impedirei.
A voz de Kiantô foi sumindo, como a chuva. Em pouco tempo suas costas coloridas sairam do céu. Todos estavam preocupados na verdade. O rio da Água Dourada era muito longe, eles teriam que passar pela taba dos caraíbas,que fica no entrocamento do rio da Água Dourada com o rio Acuntsu, e depois teriam que passar pelos seus inimigos,os Carirés, conhecidos como Guerreiros Loucos. Mas se Kiantô reservou uma terra para eles ali, então eles deveriam aproveitar a oportunidade. Pindarô iniciou marcha com a tribo. Não seria fácil, mas teriam que estar prontos desde já.
(CONTINUA...)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Lágrimas

Acordo com aquele gosto de óleo na boca.
Tem dias que nem sinto, de tão acostumado que estou.
Mas hoje senti.

Olho pela janela e vejo os quarentões e as chaminés vomitando fumaça nos céus.
Geralmente nem ligo pra isso.
Mas hoje liguei.

Me debruço um pouco sobre a janela e vejo lá embaixo, as pessoas andando na rua,
como se fossem formiguinhas, formiguinhas usando celulares tentando desviar dos mendigos e buracos da calçada.
Nunca percebi tal coisa.
Mas hoje precebi.

Vou escovar os dentes e vejo minha cara no espelho (oh, que fantástico!afinal o que mais eu poderia ver lá?), mas além do sarcasmo de momento, acontece outra coisa.
Vejo uma cara cinza, escorrendo graxa da boca, um nariz sujo de carvão que parece não ter mais utilidade. Tenho a impressão de que dentro de mim não há nada além de engrenagens.
Nunca me vi dessa forma, mas hoje vi.
Não sei porquê. Mas encontrei uma pista nos meus olhos fundos: um sopro inexplicável de vida escorreu de minhas retinas pelo meu rosto, limpando um pouco do carvão por onde passou.

domingo, 27 de junho de 2010

Meu projeto

Muito bem, o conto que vocês acabaram pode parecer meio confuso, mas não tem problema: eu explico tudo.
Esse conto faz parte de um projeto maior sobre a Amazônia. Na realidade comecei a criá-lo antes mesmo de vir para Manaus. Foi na metade do ano passado. A inspiração veio de diferentes lugares e tempos: em primeiro lugar, o curso de História da América Latina - estávamos discutindo então a idéia de civilização e bárbarie, enquanto estudávamos as independências latino-americanas, mais especificamente o caso argentino e brasileiro. Uniu-se á esse tema que muito me interessa os filmes Flyboys (adoro combates áereos e esse filme me pareceu o mais fiel até agora ao estilo) e Up-Altas Aventuras (achei interessantísimo a criatividade do filme e como ele aproveita esse ideal do aventureiro). E, finalmente, temos meu próprio ideal de Amazônia, que começou a ser revisto depois de entrar em contato com um pouco da história de região - principalmente no que tange á Ajuricaba, as icamiabas, O Mundo Perdido de Conan Doyle e etc.
Mas em que consiste o projeto? Como eu não quero estragar a surpresa, digamos que seja uma história sobre aventureiros (principalmente aviadores)na indomável Amazônia em um passado meio steamer contra piratas, zepelins, monstros e muito mais.
O que conto aí embaixo, dos Acunstu, é uma pequena parte dele, na verdade,não tem qualquer ligação com o enredo principal. Mas prometo que começarei,ou tentarei, publicar aqui algumas partes do roteiro para dar um gostinho para vocês, meus leitores imaginários.

sábado, 26 de junho de 2010

Entre dois mal ou a segunda viagem dos Acuntsu

Apinaã era bravo guerreiro, homem forte e de atitude. Mas desde que voltara do cativeiro, Apinaã mudou muito. Não olhava mais com o mesmo olhar os outros índios da taba. Era um olhar diferente. Ninguém sabia porque.
Os Acuntsu estavam passando por um momento delicado. Depois que conheceram os caraíbas tudo mudou. Esses caraíbas não eram como os anteriores, com quem eles negociavam quinquilharias. Esses caraíbas eram piores: queriam que sua tribo se ajoelha-se para eles, que a tribo usasse as roupas deles, que a tribo obedecesse ao chefe deles, o demônio caraíba.
Os Acuntsu eram grandes guerreiros no passado, lutaram bravamente contra a confederação dos barés anos antes. Eram uma das únicas tribos que se recusava a se unir á confederação. No entanto, os caraíbas tem armas muito potentes. Seus barcos feitos de metal, cuspindo fumaça, não sentem o peso das flechas e dos tiros de carabinas. Suas armas possuem mais balas que as carabinas e espingardas. Nas batalhas anteriores tanto os Acuntsu como os seus "irmãos", os Kadiwéu, foram massacrados.
Apinaã foi um dos que lutaram ao lado dos "irmãos" perto da foz do rio Jari. Ele matou muitos caraíbas, mas foi capturado. Ficou preso em uma jaula por dias. Da jaula ele podia ver os caraíbas surrarem seus amigos e "irmãos", quase todos os dias. Apinaã ficou com vergonha. Fico com vergonha de seu povo, por ser tão fraco, por não responder á altura.
Depois de duas semanas Apinaã foi solto. Os caraíbas pediram para que ele dissese á sua tribo que eles chegariam na aldeia em cinco dias. Era para eles escolherem: ou se rendem ou lutam. Apinaã agora estava mais envergonhado ainda: o destino dos grandes guerreiros é ser morto em combate, ele, por outro lado, foi preso e agora solto como um simples menino de recados. Apinaã sentia o peso da vergonha nas costas, por isso andava envergado agora.
Quando chegou a taba, disse que queria falar com o velho Pindarô. Todos ficaram surpresos com sua volta. Mas Apinaã não queria falar nada com eles, seus olhares só aumentariam mais ainda sua vergonha. O velho Pindarô chegou.
-O que foi, meu filho?
-Pindarô, os caraíbas me soltaram pra falar com você que em cinco dias eles chegam aqui. Eles disseram pra gente se render ou lutar.
Pindarô pensa na notícia e de pronto responde:
-Que bicho ignorante esses caraíbas! Pensam que nós vamo nos render! Essa terra foi nos dada por Kiantô, eles ganharam a parte deles e querem a parte de todo mundo. Se os barés esqueceram disso vamo lembrar á eles. Vamos continuar lutando!
Os curiosos ao redor, eram muitos, se entusiasmaram. Mas um perguntou:
-Pindarô, e como nós faz pra lutar com eles? Eles tem mais armas que nós e os barcos deles são fortes como couro de jacaré! Nós temos pouca gente pra lutar, pouca carabina pra atirar...
-Adjnew, não se preocupe. Kiantô nos ajudará.
Pindarô parou um pouco pra pensar, enquanto pensava remoia nos dentes a erva que tinha comido para curar a dor na garganta. Depois de pensar e ruminar, falou:
-Karidjé e Techua, vocês vão escolher mais 3 home pra ir com vocês descer o rio. Vocês vão derrubar árvores no rio pra atrasar eles.
-Sim, Pindarô.
-Nós vamo pensar no que fazer enquanto isso...
Apinaã acompanhava tudo cabisbaixo,olhando com o canto do olho. Com o canto do olho ele também podia ver o pessoal em volta olhando para ele, com surpresa e com desconfiança.
-Apinaã, meu filho, vamo conversar.
Pindarô pegou Apinaã pelo braço e levou até sua oca. A oca de Pindarô era grande, tinha muitas redes. Sua mulher tava no chão cozinhando um cauim pra melhorar sua dor na barriga. Sua filha tava balançando em uma das redes.Era índia bonita ela.Chamava Mani e tinha olhos bonitos de quem tem curiosidade e simpatia pela vida. Ela olhava para Apinaã com um olhar desconfiado. Apinaã se surpreendeu a ver que ela estava diferente, com uma trança colorida, sinal de que iria se casar em breve.Mas logo o olhar dos dois se chocou; ele, envergonhado, desviou, ela, sapeca, achou graça.
-Mani, por favor sai um pouquinho pra eu falar com o moço.
Ela então desceu da rede, com o corpo mole, e saiu da oca.
-Eu pedi pra ela sair, porque tenho medo dela se assustar com as coisas que nós vamo falar.
-Que coisa, Pindarô?
-Dos caraíbas, meu filho. Ela tem medo deles. Ela nunca viu, mas acha que eles tem unha de tamanduá e corpo de onça.
Pindarô cospe a ervinha que tava no canto da bochecha.
-Apinaã, tu ficou preso na casa deles?
-Fiquei,Pindarô.
-E como é que é? A casa é muito grande? Tem muita arma?
-Era duas vezes mais larga que tua oca. Tinha umas arapuca onde nós ficava preso. Ficava dois caraíba vigiando a gente e quando o caraíba chefe saia, eles pegava um de nós da arapuca pra fazer maldade.
-Bicho ruim esses caraíba!
-Mas eles tinha muitas armas. As carabinas deles eram grandes, tinham também uns trabucos mais leves que levam na cintura.
-Garrucha?
-Sim, mas sem pólvora.
Chegou a ver o barco deles? Se tinha muito ou um só?
-Num vi, Pindarô. Eles me soltaram no meio do mato de noite.
-É... Não se preocupe, Apinaã. Nós ficamos felizes por você ter voltado. E tu lutará ao lado agora de sua família.
-Sim, Pindarô.
Os dois pararam de falar. A mulher de Pindarô deu uma cuia com o cauim pro velho e, pra não fazer desfeita, ofereceu uma tigela de açaí pra Apinaã. Os dois homens pensavam longe agora. Enquanto Pindarô tava preocupado em como arrumar a aldeia pra atacar os caraíbas, Apinaã estava certo de que eles não tinham chance nenhuma. Apinaã tava lamentando já a morte de todo mundo, principalmente a sua. A guerra ia ser um massacre. Ele tinha visto a guerra no Jari. Os caraíbas tinham carabinas que cuspiam pra mais de mil tiros de uma vez só. Eles nem precisavam estar perto pra atirar. Aquela, por exemplo, estava presa na copa das árvores, atirando pra baixo.
O resto da tarde, Apinaã andou pensativo, sentado perto da oca do velho. Foi até a beira do rio, pedir á Kiantô, a cobra das costas de arco-íris, para ajudá-los. Mas Apinaã estava duvidando de Kiantô. Nunca vira ela e ela não impediu a morte dos seus "irmãos". Pra ele Kiantô tava era em outra braçada do rio, bem longe dali.
Mas enquanto olhava o rio Apinaã teve idéia. Ele sabia de quem morava por perto.
Quando Kiantô trouxe os Acunstu para essa beirada do rio,advertiu que ali perto morava Ururã, o pai dos jacarés. Ururã era um jacaré gigante, dos olhos vermelhos, que de tão velho o couro tinha virado pedra o que fazia ele impossível de ser morto.
Ururã se alimenta de tudo quanto é bicho, até de seus filhos, mas ele tem preferência pelas mulher virgem e pelas crianças. Ao contrário de Kiantô, Ururã sempre apareceu nessas paragens, pelo menos desde que Apinaã se entende por gente.
Vez ou outra as crianças que vão brincar na beira do rio são engolidas por ele. Não só aqui na taba, como nas tribos rio abaixo. Os Kadiwéu tentaram matar ele uma vez, depois dele ter comido a filha do pajé. Mas não deu em nada. Os cinco guerreiro que foram atrás dele voltaram boiando pelo rio tudo despedaçado.
Apinaã teve idéia. Pedir ajuda de Ururã, afinal, que ele saiba, ele odeia os caraíbas tanto quanto eles.
Chegando o final da tarde, Apinaã pegou uma canoa e disse aos outros que ia pescar. Subiu o rio. Quando chegou na parte do rio onde el vira dois, Apinaã pegou o caminho pra toca do Ururã. Era parte do rio onde a mata se fechava mais, parecia que aos pouco o teto das árvore ia cair no rio. Chegou num banco de areia, chamou por Ururã.
-Nunca vi macaco mais burro que tu, disse uma voz cavernosa vinda do canto do rio mais á frente.
Apinaã olhou bem e percebeu que o tronco caído mais á frente era o próprio Ururã.
-Num sou macaco, sou homem!
-Homem é macaco pelado e sem rabo. Tem o mesmo gosto que macaco. Mas quando é filhote ou é fêmea e num deflorou o gosto é diferente...
O monstro abrira os olhos, os olhos vermelho. Apinaã tentava criar coragem pra encarar o bicho. Mantinha a carabina perto da mão, mas sabendo que tiro nenhum ia fazer efeito.
-Eu vim aqui pra fazer acordo com você.
-Ururã num faz acordo.
-Ururã também não gosta dos caraíbas.
-Hm... Caraíba, bicho feio. Com gosto de pus...
-Mas nós também não gostamos deles.
-Ninguem gostar de caraíba, só eles mesmos.
-Então... Ururã pode se juntar a nós pra acabar com caraíba.
Nessa hora saiu aquele bramido, que parece que trovão dentro da barriga do bicho. Mas não era fome não, era riso.
-Eu não tenho que me preocupar com caraíba não,macaco pelado. Eles pode tentar me achar, mas nunca vão me matar. É pena ter menos gente pra comer, mas o que importa é que vou continuar andando pelo rio, comendo quem eu quiser.
Apinaã temia por sua vida: se não conseguisse o acordo é certo que o bicho ia engolir ele de uma bocada só.Então ele se desesperou:
-Ururã e se tu ganhar 5 virgens?
O monstro foi se aproximando lentamente do guerreiro, com interesse nos olhos.
-Hmm... faz tempo que Ururã não come virgem, parece que os caraíbas espantaram elas. Se Ururã te ajudar tua tribo vai ter que dar 5 virgens pra ele e 5 filhotes. E uma delas tem que ser filha do chefe!
Apinaã concorda.
-Quando chegar os caraíbas?
-Daqui a dois dias.
-Ururã vai tá lá. Mas depois que matar os caraíbas vocês vão ter que entregar a comida de Ururã. Deixa elas na beira do rio que eu venho pegar. Num se esquece, macaco pelado. Se num trazer elas, vocês nunca vão poder nadar no rio de novo que Ururã vai caçar vocês pra sempre.
Apinaã ouve atentamente. Ururã, lentamente volta para o canto em que estava. Apinaã pega sua canoa e sai rio abaixo. Enquanto vai descendo o rio, a tarde vai caindo, refletindo as cores do sol nas águas barrentas. Na cabeça, Apinaã está meio confuso. Afinal, Apinaã acabou de condenar 10 pessoas de sua tribo. Mas, pensa ele, pelo menos o resto da tribo vai continuar vivo. Enquanto rema, Apinaã tenta se convencer de que salvou toda a tribo.

(CONTINUA...)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Geni e o Zepelin

É inevitável, toda vez que ouço essa música me vem um cenário meio steampunk, meio realismo fantástico na mente. Quer dizer, estamos falando de uma cidade no Brasil, com um certo tradicionalismo, que é visitada por um zepelin que ameaça a explodir a cidade. Já percebemos de antemão alguns elementos do steampunk (o tal zepelin, com seus "canhões" e seu comandant, que "cheirava a brilho e cobre".
Surreal!Mas divertido, principalmente no refrão.

GENI E O ZEPELIN
Chico Buarque

De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir

Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir

Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão

Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir

Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

O Fim do Brasil

Havia alguns minutos que o sarau de Dona Emiliana Queiroz Barros tinha acabado. Como é de costume. as senhoras se recolhem á sala de jantar para conversar sobre as novidades da cidade, enquanto seus maridos continuam na sala discutindo política e negócios, dentre outras coisas.

O Barão de Jeremoabo era deputado federal e um dos primeiros membros do Partido Conservador em Taubaté, fato aliás do qual muito se orgulhava. No entanto, desde que o Imperador montara o Gabinete da Conciliação, constituído em sua maioria dos setores liberais, as reclamações sobre a política da Corte são frequentes, para desgosto de seus amigos que já as sabiam de cor. Por isso quando o Barão perguntou se eles sabiam qual foi a última mancada do ministro Lafayette todos franziram a testa.

-Pois saibam que esse fanfarrão teve a coragem de afirmar que chegou no Ministério cavalgando em um livro de Direito! Vejam só! Então o sr. Lafayette é o único homem que se fez sozinho! Então ele não teve a ajuda do ministro Sinimbu! Vejam só. Eles pensam que nós somos imbecis para cair numa patota dessa…

-Não se preocupe, caro Barão. Ministérios vem e vão. Aposto que na próxima década o gabinete será totalmente conservador, disse o Marquês de Água Branca.

-De fato o será, o Marquês de Paraná me assegurou. Mas o que me deixa preocupado é a arrogância destes “doutorzinhos”! Não será muito difícil que eles façam uma presepada no governo e sobre ao gabinete que vier o mérito de gestar o problema!

-Ora, Barão, acredito que a maior besteira que eventualmente possam fazer serão se embriagar-se em bailes ou serem pegos em rodas de capoeira. Não poderão fazer besteiras maiores. Veja bem: Abolicionismo? Sabemos que a maioria deles tem escravos e mesmo os que não os possuem na certa tem medo de perder o apoio dos demais fazendeiros.Republicanismo? Além da capital de São Paulo e dos becos do Rio onde mais se ouve falar em República? Meu caro, mesmo todos os republicanos juntos não poderiam fazer um levante em um município sequer! Por isso, meu amigo, fique tranquilo, não há muito com o que se preocupar vindo destes homens.

-Assim espero, caro Marquês. Assim espero…

-Não dê motivos para perder a pouca juventude que ainda lhe resta, amigo, com os caminhos da política… (apontando para sua xícara de café, apresenta sua conclusão para o amigo) Essa xícara aqui tem sustentado o Império á tantos anos, como bens sabe, e o Império não é louco de não protegê-la.

Ao Comendador Queiroz Barros, que assistia a tudo calado, veio uma idéia.

-Meus amigos, diante da conversa que vocês dois travavam sobre os rumos da política eu tive, digamos assim, um desvario, um sonho.

Uma breve pausa para aumentar o interesse dos amigos – o Comendador era um homem muito afoito á gestos teatrais, aliás, á sua paixão pelo teatro sobrepunha-se seu amor pela literatura.

-Imaginei o seguinte: e se um dia o café desaparecer de todas as lavouras não só do Vale como de todo o Brasil?

Nova pausa. Tanto o Marquês como o Barão não entenderam a proposição do Comendador.

-Desaparecer como? – pergunta o Marquês.

-Ora, desaparecer! Como se fosse magia, ao amanhecer de um determinado dia os encarnados brotos do cafeeiro evaporaram. Não só em São Paulo, mas em todo o país. Nunca mais veríamos novamente um grão de café que seja.

O Barão de Jeremoavo, amigo a mais tempo do Comendador que o Marquês e por isso mais ciente do caráter teatral do seu amigo, já entenderá a proposta de seu amigo.

-O que o senhor Comendador está nos sugerindo é um exercício de imaginação, estou certo?

-Claro, Barão. Respondeu, satisfeito pelo amigo ter entendido sua intenção.

-Ora, um exercício de fantasia, isso sim. Desaparecer com todo o café do país sem nenhum motivo natural, sem causa aparente, é uma elocubração muito abstrata! – Disse o Marquês, homem de negócios, que não conseguia entender o ponto do Comendador ainda.

-E o que seria a imaginação, meu caro Marquês, se não uma elocubração abstrata? A imaginação, meu amigo, é isso e muito mais. É dela que se trata a Literatura , bem como toda a Arte. E digo mais: ela é um dos propulsores do avanço de nossa civilização. Sim, tomemos por exemplo, a invenção das locomotivas: uma máquina que se movimenta com vapor não lhe parece algo meio… não-natural?No entanto, a locomotiva existe e está aí, a carregar sacas e sacas de café. E se o inventor delas não tivesse imaginado uma máquina que não fosse movimentada por cavalos simplesmente por parecer algo absurdo?

-Mesmo assim, carbonário colega, a imaginação nesse caso serviu a um propósito: a melhorar a locomoção das pessoas. Qual seria o propósito em extinguir o café do mundo? Não vejo nenhum interesse prático para isso, a não ser para os radicais anti-patrióticos…

-O propósito aqui seria simplesmente se divertir. Ora, imaginemos o que aconteceria com o país se isso viesse de fato a ocorrer. Além disso, podemos até refletir um pouco, criar maneiras de nos precaver a tal acontecimento – que Deus queira nunca aconteça!

-Marquês, – fala o barão, com a mão sobre o seu braço – nosso amigo, na verdade, está tentando avaliar a sua imaginação.

-Ora, não precisa ser muito criativo, para prever o que aconteceria: seria o fim do Brasil! E não precisaria de muito; se o café sumisse somente no Vale já seria o bastante para tal desastre. O que mais esse país produz além do café? Nada! A cana está em baixa, o algodão, com o final da guerra nas Treze Colônias, desvalorizou-se, o tabaco e o cacau são produtos secundários.

-Só por não termos mais produto de exportação estaríamos liquidados, caro Marquês? – pergunta o Barão, com aquele olhar de quem está avaliando os colegas, mesmo olhar do Comendador Queiroz Barros.

-Sr. Barão, o que faz uma nação é a sua economia. Não existe nação sem economia, uma nação que não se sustente não é nação, é um entreposto, uma colônia. Sem o café voltaríamos a ser colônia, dessa vez da Inglaterra. E não como antes, não senhor, dessa vez seria muito pior, porque esses anos todos sob o encargo da Metrópole tínhamos produtos valiosos; sem o café, não teríamos nada! Nos tornaríamos como uma colônia africana, como a mais pobre colônia africana, como um Congo Belga!

O Barão ouvia a tudo olhando para sua xícara, enquanto alisava a ponta dos longos bigodes, costume que se tornara mania desde que deixara o crescer. Ao fim da explanação do Marquês, o Barão começaria a sua. Como de hábito - antes de cada discurso no Parlamento o fazia – abre sua fala com um pigarro.

-Pois eu discordo do senhor, Marquês. Eu penso que uma nação é mais que o que ela produz e o que ela vende. Uma nação é feita pela moral de seus homens, pois sem moral estaríamos nus fazendo pajelança pelo mato. É a moral que nos movimenta e nos faz ser civilizados, cada vez mais civilizados. Infelizmente nossa nação não é totalmente civilizada ainda, graças ás populações escravas e nativas que a habita. Nesses anos todos trouxemos um número considerável de escravos africanos para nossas terras, de tal maneira que temos aqui em Taubaté mais de dois terços de escravos no total de nossa população. Imaginem os senhores o que aconteceria se eles ficassem sem trabalho. Sem lavoura, no que trabalhariam todos eles: Em afazeres domésticos? Nada disso, meu bom Marquês! Seríamos forçados a assinar a Abolição! Teríamos uma população mestiça… A não ser que o Visconde de Taunay continue com seu excelente trabalho de recrutar imigrantes europeus para nosso país, que agora seriam dirigidos ás cidades, ao comércio.

Pausa para um pequeno gole de café.

-E, além do mais, – retorna o Barão – temos que considerar os riscos de uma guerra civil! Pois vejam bem: toda essa população escrava tentaria fugir do jugo do fazendeiro, agora que não há motivos para estarem atrelados á terra e aí começariam levantes, tais como aqueles ensaiados pelos negros em 1842! Lembram-se do medo? Não só guerras com escravos, mas guerras com a oposição também!! Afinal, os radicais voltariam, os gabinetes da Conciliação se dissolveriam em ataques ferinos, em mortes e atentado. O Brasil se tornaria um novo Haiti ou uma nova França após a queda da Bastilha, ou ambos!

O Marquês começou a falar, dessa vez discordando do ponto de vista do ilustre colega sobre a alma das nações. O Comendador Queiroz Barros se divertia em ver os dois discutindo. Agora ficava nítido a posição de cada um deles: o Marquês de Água Branca era um homem de negócios, enxergava os problemas pelo prisma da contabilidade, era muito prático, sempre o foi. Foi assim que ascendeu á condição de fazendeiro, pois, até onde Barros sabe, ele era filho de vendeiros, mas ficou rico investindo em mulas, vendas e depois em terras. O Barão de Jeremoavo era um aristocrata, um estadista, pensava, bebia, comia e exalava política. Seu pai era um tremendo estadista, amigo íntimo do Visconde de Itaboraí e de Vossa Majestade. O Barão conseguia seus projetos na Corte através de muita e muita negociação, proferindo longos discursos com os já característicos pigarros.

O Comendador estava a assistindo a um debate entre dois homens muito diferentes, defendendo suas visões como verdadeiros filósofos, e sentia um certo gosto nisso. Na certa porque o Comendador é, antes de tudo, um intelectual. Formado em Direito, mas nunca exercera a função; herdara as terras do pai, mas nunca entendeu muito bem sobre as técnicas usadas na lavoura. Ao contrário, o Comendador era um bacharel da Filosofia e um fazendeiro literário. Por isso ele se ocupava muito pensando em historietas e em debates. Ele gostava de provocações e de soluções criativas. Na sua casa não é raro chamar seus escravos e agregados e propor-lhes algum problema matemático ou alguma anedota filosófica, como o dilema de Zenão. Ele gosta de fazer isso.

-E o que você acha, Comendador? O que acha que aconteceria?

O Comendador então se prepara.

-Bem, Marquês, acho que primeiramente todos tentariam explicar o que aconteceu. Seriam chamados milhares e milhares de cientistas de todo o mundo para solucionarem o dilema e então, depois de alguns meses uns chegariam a conclusão de que o café evaporara através dos gases expelidos pelas fábricas inglesas na atmosfera e outros deque se trata de um raro caso de esterilização que acontece nas lavouras do mundo inteiro a cada 100 anos.

-Ora, pensei que nesse seu hipotético mundo sem café não existiria explicações científicas para tal “exercício de imaginação”!, comenta entre a ironia e a curiosidade o Marquês.

-Não, meu caro colega. Toda história, por mais fantástica que seja, tem que conservar uma centelha de realidade para ser crível, meu amigo.

-Então o que fez o café desaparecer? Os gases ou a esterilização?

-Nenhum dos dois, meu amigo. Essas são apenas afirmações hipotéticas de cientistas, que como nós sabemos são falhas até que se prove o que realmente aconteceu. O caso é que o mistério sobre o café deve ser mantido. Afinal, se esse é um episódio fantástico, como todo bom episódio fantástico, deve contar com o mistério, o inexplicável, pois isto o torna atraente, isto prende o leitor!

-Muito bem, Comendador. E o que acontece com a economia, ao seu ver?

-Bem, acho que haveria um caos na economia. Como o Marquês bem lembrou, nossas exportações são baixas frente ao mercado internacional. O governo teria que investir em algo mais tangível. É claro, depois de muita balbúrdia. Acho que aconteceria sim alguns levantes, mas que seriam facilmente controlados. Os republicanos conseguiriam redirecionar o povo com sua falácia, é claro, ameaçando a Monarquia. No entanto, diante de tanta miséria, eles se uniriam ao Imperador para reconstruir o país novamente. Afinal, eles também querem o poder. Surgiria uma conciliação entre os republicanos e os monarquistas. Os levantes seriam reprimidos mais uma vez, como em 1842…

-E em que consistiria nossa economia?

-Na indústria! O Imperador tentaria algo mais tangível, como disse, e apoiaria a entrada de mais indústrias estrangeiras, além de diminuir o imposto industrial. Teríamos mais Mauás e Ottonis. Os escravos e imigrantes seriam redirecionados á indústria, sendo os primeiros libertos, uma vez que a escravidão não poderia imperar nesse suposto status quo. Em pouco tempo o Brasil se industrializaria, conseguindo se reerguer da grande crise, tornando-se uma Inglaterra dos trópicos.

O Marquês ri, enquanto o Barão ainda tenta digerir o fato da conciliação entre republicanos e o Império.

-Então a indústria nos salvaria? Francamente, senhor Comendador, isso não é ficção é humorismo! No seu mundo hipotético o fim do café ajudaria o país a se tornar rico, uma “nova Inglaterra”, regenerando nossa população no trabalho. Nem Thomas Morus poderia criar tamanha sandice! Com todo respeito, senhor Comendador, de crível sua suposição não possui nada!

-Ora, é uma possibilidade! Se o senhor vivesse na Idade Média diria que máquinas que imprimem letras ou veículos que se movimentam graças á potência de uma fornalha seriam verossíveis?

-Claro que não, mas dizer que o Brasil se desenvolveria sem o café é ir longe demais, Comendador. Nenhum alucinado profeta medieval seria capaz de enunciar tal coisa.

-Bem, gostaria de lembrar que é apenas um exercício de imaginação. Em se tratando de imaginação tudo é possível.

-Ainda bem que é só isso! Imaginem se isso realmente acontecesse! Nem sei o que faria! – disse o Barão entrando de novo na conversa, após acabar com sua xícara.

-Fique tranquilo, Barão. Só nós conseguimos plantar o café me lavoura, nenhum outro país o faz tão bem e não o fará por séculos! Deixemos para nos preocupar com o fim do café e o consequente fim do Brasil daqui á cem anos, portanto.

Fechando assim sua fala, o Marquês pegou sua xícara, abandonada no início da conversa, mais uma vez, dando cabo de seu conteúdo. O Comendador Queiroz Barros, no entanto, se maravilhara com sua criação, seu Brasil industrial e gigantesco enquanto retomava, como o Marquês, sua xícara. Já chegava a imaginar as fantásticas máquinas que cruzariam nossos ares e mares, via-se como um Jules Verne provinciano, a engendrá-los em pensamento. Deleitava-se com suas criações mais que com o próprio café, que chegava ao fim.