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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Como era verde o meu campo

-Dia brabo, em!
Comentou o senhor ao lado de Aldano, mas ele fingiu não ter ouvido nada. O dia estava ruim mesmo, esse comentário é mais do que óbvio. Afinal, qual dia em um campo de trabalho não é ruim?
Aldano andou á frente, em direção á seu colega Braz. Gostava dele; não era um cara brilhante, mas era um bom ouvinte e Aldano tinha muito o que falar. Tirando isso tinha um otimismo e um entusiasmo infernal.
-E aí, cara? Tudo bem? O sol hoje tá brabo, né?
Fingiu que não ouviu a última parte da fala do colega e começou a falar como se já estivesse impaciente.
-Tá, tá bem sim, Braz. Olha, você pensou naquilo que te disse ontem?
-O quê?
-Aquilo, cara...
Olhava para os lados. Não era fácil alguém se esconder na plantação; a vegetação era rasteira e as plantas maiores eram muito finas e frágeis. A única pessoa por perto era o velho que comentou sobre o dia lá atrás. É um velho, mas vai que ele tem boa audição?
-Aquilo!!
Braz se lembrou da conversa de ontem na cela.
-Ah, aquilo! Sei, sei... Cara, eu acho isso meio perigoso, eu te disse...
O velho se afastara, fora arar a terra no final da canaleta.
-Você prefere ficar aqui?
Braz vai um pouco adiante para colher uma fruta que parece ter nascido antes do esperado, envergando a planta até o chão.
-Mas, pensa bem: você sai daqui, vai viver lá fora como? O mundo muito, cara! Aqui pelo menos a gente tem comida, tem água, tem casa...
Aldano interrompe bruscamente.
-Mas aqui não tem liberdade! Aqui você não pode fazer mais nada, aonde eu quero ir não posso, tenho que ficar aqui arando essas plantas da porra nesse sol fodido! Você acha isso legal?
Braz fica em silêncio; não tem resposta. Aldano se acalma e conta mais sobre seu plano.
-Amanhã, eu vou fazer o esquema: vou me jogar no meio do sorgo e esperar a debulhadora me pegar...
-Cara, isso é perigoso..
-Perigoso nada! Antes de cair no processador eu me agarro na tubulação e espero eles guardarem a debulhadora na garagem. Aí eu saio. Daí em diante é fácil. Ninguém vigia a garagem, sair de lá vai ser mole. Eu preciso saber se você vem comigo, porque aí você vai ter que ser rápido; se não agarrar antes de chegar ao processador você vira carne moída.
-Num sei não...
-Deixa de ser cagão, cara!
Aldano maneira a voz. O velho, lá longe, no fim da canaleta, olha, mas não se assusta; ele conhece o caráter brigão de Aldano, na certa deve estar brigando com o Braz por ter jogado água no seu sapato.
-To te convidando, to te oferecendo a liberdade! Pensa melhor.
Braz olha para o chão. Não está mais animado como antes, isso é claro. O cara é conformista demais, pensa Aldano.
-Tá...
Responde o seu colega depois de um minuto de silêncio, enquanto arranca da canaleta uma enorme lesma atraída pela água de onde saem as plantas. Logo em seguida, joga um elemento higienizador em pó no lugar. Aldano se anima.
-É, pensa um pouco e me dá a resposta na janta, viu? Viu?
-Sim.
Braz não quer ir, mas não saber dizer não. Aldano já se zanga com seu entusiasmo aqui, imagine então com uma declaração aberta de que não quer sair do campo de trabalho. De alguma forma, Braz gosta de estar aqui. Gosta de trabalhar. Ele não pensa no que há lá fora, porque acha que não resta mais nada para ele lá. Não havia muito antes. Aqui não, ele tem um trabalho, ele tem algo para se ocupar. Ele faz bem feito, ele é reconhecido - já foi cinco vezes seguidas o trabalhador do mês, ganhando de presente cinco medalhas de zinco. Além disso, ele está trabalhando por algo maior. Se não fosse pelos alimentos produzidos pelos prisioneiros aqui no campo o país não teria atravessado a crise de fome. As frutas, legumes, peixes e aves que Braz colhe e trata salvou milhares de pessoas e está deixando elas mais saudáveis a cada dia.
Um veículo de metal de forma arredondado que move-se como uma carroça, com um guarda em seu dorso, passa perto da canaleta. Aldano se afasta, mas lentamente, como se estivesse olhando a água das outras plantas. Antes de ir ele dá um tapa nas costas do amigo e diz:
-Te vejo no jantar então!
O dia demorou a passar. Geralmente passa rápido para Braz, sempre ocupado com o pavilhão dos peixes ou com as plantações. Mas a proposta de Aldano o fez pensar. Pensar demais. Braz olhava as canaletas, os tanques dos peixes, as gaiolas das galinhas. Um olhar melancólico. Um olhar de quem se despede. Braz não sabe dizer não, ainda mais para seu amigo - o único -, então é certo que irá fugir amanhã, ou pelo menos tentar.
Jantar. Nunca ele temeu tanto assim a hora do jantar. Depois de tomar o habitual banho, Braz seguia com os outros prisioneiros para o refeitório. Lá podia-se comer parcela do que se produzia ali: frango com vegetais, peixe com ervas, coisas do tipo. Nos primeiros tempos, tudo o que havia de mais podre era servido aqui. Agora não.
Braz vai para sua habitual mesa. Aldano está lá esperando. Está com o nariz roxo, na certa brigou com alguém de novo.
-Então?
Aldano espera pelo sim e o obtém. Um sim nervoso, mas Aldano nem se importa.
-É isso aí, cara! Assim que se fala!
Braz não parece muito entusiasmado, mas recebe um tapão nas costas.
-Quando estivermos lá fora eu vou te levar pra conhecer minha cidade. Não que seja bonita, sabe, mas lá tem um dos melhores puteiros da região. Eu vou te apresentar alguém... Dona Jezebel! Ahahah.
Aldano ria, enquanto mastiga um punhado de arroz integral e milho. Braz apenas observava os grãos de milho que saiam de sua boca caírem na mesa ou no chão.
-Depois vamos ver o mar, cara. Você não sabe quanta falta eu sinto do mar, cara! Você já viu o mar?
-Não...
-Você vai ver, vai se impressionar. É como uma lagoa grande, só que mais escura e mais agitada. Você já viu uma lagoa, né?
-Não...
-Puta merda! Aonde você vivia? Não ter mar dá pra entender, mas não ter lagoa...
Enquanto falava Braz já sofria o desgosto de enfrentar o mundo de novo. Mas dessa vez, pelo menos, ele estaria com o amigo. Aldano, por sua vez, estava já sentindo o sabor da liberdade. Sorria, entre uma garfada e outra. Os presos ao lado estavam desconfiados; esse homem nunca ri! Aldano gostava de Braz. O via como um cachorro ou uma criança. Na cidade, lhe ensinaria o que é viver realmente.
Braz percebia pela primeira vez que a liberdade vinha antes de sua amizade. Isso o deu mais medo. Afinal, Aldano e ele fogem, ficam livres e seu amigo vai querer se esbaldar, esquecendo fácil fácil o companheiro. Mas já estava feito, eles fugiriam amanhã.
A noite demorou a passar para os dois: um, por ansiedade, outro, por medo. Chegou a hora: levantaram-se, vestiram seus uniformes cinzas e foram para o trabalho. Braz carrega consigo, debaixo do uniforme suas preciosas medalhas de zinco. Entraram na fila para a plantação de sorgo. Eles e os demais trabalhadores foram levados por um imenso caminhão achatado que apitava até a plantação. Lá, quatro debulhadoras os esperavam. Era difícil lidar com essa máquina. É necessário que dois homens fiquem na caldeira, enquanto dois controlam na frente seus movimentos. Há o supervisor que vigia o processo todo, passando por todo canto da enorme máquina. Aldano e Braz não eram para estar aqui, mas como há sempre mudanças de última hora o supervisor demorará a perceber isso e até os inspetores descobrirem o erro e chegarem até essa plantação eles já estarão dentro da máquina.
Aldano seguido por seu fiel colega se aproximam da seção de armazenamento. Ambos espiam. Ninguém por perto. Aldano se joga no mar de sorgo. Braz hesita por um instante, mas pula. Rapidamente, se escondem no cereal. Respirar está difícil, mas dá pra aguentar.
A plataforma onde estão começa a inclinar, jogando todo o seu conteúdo em um enorme buraco. Os fugitivos (ou candidatos á fugitivos) descem pelo encanamento da máquina como se fosse um tobogã. Aldano tenta achar alguma fresta ou algum vão na tubulação onde possa se agarrar. Conforme avançam os vão se tornam mais salientes. Aldano se segura em um deles. Braz ainda está tentando. A cabeça está a mil: cidade, puteiro, polícia, etc. Mas a mão agarra alguma coisa. O sorgo ainda está caindo. Já se pode ouvir o processador amassando os grãos e até sentir o seu calor. O vento ainda circula na tubulação. Conseguimos, diz Aldano. Braz só consegue ver na escuridão as luzes da cidade, aquele inferno. Um rapaz sozinho, cheio de fome. Quando sair dessa tubulação, Braz estará sozinho de novo. Não é possível! Não pode acontecer, pensa. Mas agora é tarde para voltar. Talvez não, pensa. Ele ainda pode continuar no campo, ele pode conseguir não sair do campo. É simples. É só seguir a tubulação.
-BRAAZ!...
O sorriso vira grito: seu fiel escudeiro escorregara para a morte. Escorregou não, deve ter se soltado. O merdinha se soltou, pensou Aldano, mas não no habitual tom de reprovação. Era mais um lamento. Não ouviu nem gritos de agonia, o idiota devia estar sorrindo. Na esteira, o laranja dos grãos tornava-se vermelho, uma pasta vermelha. A única coisa que se podia distinguir dessa pasta eram pequenos objetos luminosos. Medalhas de zinco.

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