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sábado, 4 de junho de 2011

Ader Rotten ou a Selva do Desentendimento

Os soldados embrenhavam-se na selva. Como toda selva, maravilhava e amendrontava a um só tempo. Alguns soldados se admiravam das cores psicodélicas das plantas e com outras formas de vida nenhum pouco menos bizarras. Mas o que mais se teme é o inimigo, sempre.
De repente um urro estridente quebra a harmonia, como se fosse emitido pelas entranhas da própria floresta. Não, era uma ordem de ataque. Em alguns minutos os inimigos estarão aqui. Diante de tal possibilidade apenas dois soldados ficaram para ver aonde ia terminar a história. O batalhão inteiro correu em direção ao rio de onde aportaram. Alguns oficiais foram atrás com o pretexto de acabar com esse desacato. Só que se podia ouvir era o som que vinha do chão, como se uma poderosa manada estivesse chegando e com ela arrastando toda a floresta.
Bem, o som serviu de incentivo para muitos soldados apressarem seu passo. Já se podia ver o barco, apesar de camuflado podia se reconehcer alguns de seus contornos. A marcha, contudo, se aproximava cada vez mais e já podia se ouvir os gritos de dor dos soldados que ficaram para encarar o inimigo. O oficial encarregado do barco, ao ouvi-los, deu um pulo de sua cadeira e começou a preparar sua saída. Alguns soldados conseguiram subir a bordo. Outros cairam no rio e tentavam subir nadando ao lado do barco. Inútil. A água desse rio tem uma densidade muito grande e sua ingestão é tóxica: num primeiro momento deixa sonolento, depois totalmente paralisado por alguns dias. A última coisa que a maioria deles pensava era voltar á margem para não se afogarem.


Toda a imprensa estava noticiando o acordo que poderia ser firmado hoje entre as liderança terrestres e kavorianas. Afinal, foram mais de 15 anos de guerra por todos os planetas desta galáxia. Onde houvesse colônias humanas ou não. As baixas foram incríveis dos dois lados.
Difícil alguém esquecer como tudo começou: com ataques de kavorianos á novas bases humanas em alguns países habitáveis. Alguns dizem que esse planeta já era dos kavorianos que possuem um exército bem organizado e ótimas estratégias de guerra, apesar de sua aparência assustadora. Um kavoriano lembra muito um réptil terrestre: escamas, dentes, sangue frio, cauda. Além disso conta, com uma armadura impenetrável onde o elmo se confunde com barbatanas e as adagas com as garras. Conseguem regenerar seus membros em poucos dias. Alguns veteranos dizem que só há um meio de matá-los: acertando sua barriga.
De qualquer maneira, um kavoriano não é uma imagem fácil de se digerir quando se pensa que somos a única forma de vida inteligente do universo. Aliás, só achar essa série de planetas habitáveis gerou muitas questões, que iam desde a teologia até a economia.

O fato é que há um mês a confederação terrestre recebeu uma mensagem dos kavorianos. Uma mensagem secreta, direcionada especialmente ao comandante de uma operação no planeta XB2. A operação foi um fracasso e o comandante veio a falecer uma semana antes. O interessante é que o emissário conhecia muito bem a nossa língua. Ele dizia ser um prisioneiro dos kavorianos e que estes planejavam iniciar uma conversação. Não seria a primeira vez que esses astutos alienígenas tentaram nos enganar com falsas informações: nos primeiros anos da guerra, eles aprenderam a retransmitir as ondas de forma caótica e incessante como forma de atrapalhar a comunicação entre os QGs. Mas foi conferido a patente e o número de série do dito prisioneiro e foi confirmado que se tratava de Ader Rotter, um dos tantos soldados que teria sido morto na operação Monção Tropical no planeta XB2 há um ano atrás.
Semanalmente, Rotter continuou a se corresponder com a central de informações da confederação explicando vagamente as condições de sua captura e dos interesses de seus carcereiros. Eles queriam fazer um acordo.
Depois de um mês de negociações, finalmente a confederação decidiu organizar uma conferência secreta com Ader e seu "amo". Uma conferência tensa, onde tanto naves inimigas como confederadas circundaram a órbita de uma lua longínqua. Inicialmente foi uma teleconferência e somente após 4h de negociações ambos marcaram uma reunião futura onde tratariam do acordo. Essa reunião será feita hoje no planeta A-tkama, um local inóspito, mas que conta com uma pequena base de colonização ainda ativa, apesar de não ter mais colonos.
A tensão era intensa, chegando á aflorar nos tropeços de alguns oficiais e no suor constante de outros. Afinal, podia se esperar de tudo desses animais. As lideranças terrestres esperavam na base. Pontualmente ás 14h (horário da lua de Edna), as naves kavorianas chegaram e com elas Ader e seu senhor. Era uma espécie diferente de kavoriano: sua armadura era mais flexível, tirando a rígida prótese no pescoço que o tornava totalmente ereto, diferente dos demais. Parecia realmente um lagarto enorme com pescoceira. Ader o seguia. Estava trajado com uma enorme manta que parecia feita de algas ou uma espécie de esponja marinha. Estava sorridente.
Ader tomou á frente desse pomposo kavoriano e cumprimentou o comandante da nave e o diplomata - chamava-se Gamal Bieh.Em seguida, esse réptil soltou um guincho, o qual Ader traduziu como "saudações". Gamal, curioso e nervoso, perguntou se seria apropriado perguntar como ele se tornou intérprete desse líder kavoriano.
Depois de contar com o consentimento de seu senhor, Ader começou a contar sua história. Ele era um dos soldados que fugiu da horda de kavorianos mas que foi abandonado pelo barco da expedição. De todos que permaneceram no rio, Ader foi o único que conseguiu recobrar a consciência depois que os kavorianos os tiraram de lá. Foi levado para o que seria o acampamento deles. Pensou que seria devorado, mas ao invés disso o general - o líder kavoriano presente ali - o visitou e tentou se comunicar com ele. Seu objetivo era conseguir informações preciosas dos prisioneiros, mas para isso precisaria saber como interagir com ele. Ader foi perdendo o medo e começou a entender o objetivo do general. Primeiro começaram a se comunicar por figuras: desenhando no chão de terra personagens ou lugares. Em um ano, eles já conseguiam se entender por meio de gestos. Ader nunca conseguiria reproduzir, contudo, a linguagem kavoriana uma vez que as cordas vocais deles são radicalmente diferentes das nossas. O jeito foi improvisarem uma espécie de idioma do meio-termo, onde fonemas humanos e grunhidos reptilianos se unem.
A maioria dos homens naquela sala ainda não conseguia entender como duas espécies tão diferentes conseguiam se entender. Ader quando falava do general - seu nome era Zagbar - demonstrava sempre admiração e respeito. Bieh pensava que tinham feito lavagem cerebral nele, mas tinha medo de perguntar, uma vez que o general poderia entender isso.
-Qual o interesse do general nesse acordo?, perguntou o diplomata.
-General Zagbar deseja selar um acordo de trégua entre nossa nação e a dele. Um acordo de trégua que poderá se tornar o fim da guerra. Sua nação já não aguenta mais a guerra. Por causa dela pararam sua colonização e os alimentos estão escasseando.
Todos estavam desconfiados. Era possível que fosse um embuste. Esse seres são maquiavélicos. Bieh queria saber quais eram as nossas garantias.
-Falar em garantia é algo frágil para os kavorianos. Essa situação de guerra ajudou a criar um grupo de militares, uma verdadeira máfia dentro do império kavoriano que não deseja que a guerra termine tão cedo. Mas, General Zagbar assegura que investigações já estão sendo feitas e se selado o acordo estes senhores da guerra serão detidos.
Ainda assim, tudo parecia nebuloso para Bieh e os homens ali presentes. Ader conseguia perceber isso na feição de seu rosto e no clima de tensão. Zagbar pouco fazia além de observar a discussão sentado ao lado de Ader.
-Eu sei que vocês estão pensando que isso é um engano, mas não é! Nós conhecemos pouco esse povo. Eu sei que eles são uma civilização poderosa e criativa como a nossa. Mas eles tem seus defeitos, assim como nós. Não estou mentindo. Nesses dois anos eu conheci a cultura deles, suas realizações, quase tudo. General Zagbar me ensinou tudo isso. Eu pude perceber que eles não são animais, só são diferentes! Isso não é mentira! Eu não fui lobotomizado!
A reação de Ader era inesperada. Bieh pediu licença para conversar com os oficiais. Zagbar, até então impassível, sussurra algo. Ader explica que ele quer falar e começa a traduzir sua mensagem:
-Entendo a preocupação de vocês, ela é completamente compreensível. Vocês temem que quebremos o acordo e mais pessoas sejam mortas. Eu também pensaria a mesma coisa. Chegamos então á um impasse onde ninguém confia em ninguém. Proponho o seguinte: façamos esse acordo. Se algo acontecer em uma semana devolveremos duas colônias suas. Ader conhece minha cultura, sabe que não mentimos. Peço que pensem nisso: uma vez firmada a trégua, ela pode servir como uma prova de que a paz é possível. Esse pode ser um caminho para acabar com a guerra. Não queremos mais a guerra. Ela nos rebaixa aos nossos instintos mais primitivos, creio que isso também aconteça com vocês. Detestamos essa refinação de nossa animalidade. Na minha cultura, guerra significa três coisas: ataque, defesa e auto-destruição. Acho que já passamos das duas primeiras para última há muito tempo.
A lucidez do líder kavoriano surpreendeu por um minuto os representantes terrestres. Bieh agradeceu o conselho do general e chamou alguns oficiais para discutir a proposta. O inimigo mortal parece se demonstrar muito mais preocupado com a paz que nós, confidencia o diplomata. A responsabilidade é muito grande. Esse pode ser um momento histórico. Não podemos desperdiçar momentos históricos. O acordo é fechado.

Trinta anos depois, a confederação não existe mais. Em compensação, há o que ficou conhecido como Império: a união de várias nações humanas e kavorianas que comercializam entre si produtos produzidos nas mais diferentes colônias pelas galáxias. Algo perto de um dialeto universal foi criado, mas ele é muito flexível, varia para cada região. Pode-se perceber o sotaque aqui. Apesar de volta e meia surgir algum conflito entre comerciantes, kavorianos e colonos, as relações agora são de convivência.
No planeta Manah, sede do Império, existe um instituto muito prestigiado que se dedica a conservar as relações entre seres humanos e kavorianos. É o instituto Ader Rotten, administrado pela família Bieh há anos. Ele é composto pela biblioteca do General Zagbar e os documentos reunidos por Ader enquanto viveu entre os kavorianos. Rotten veio a se tornar embaixador, sendo respeitado pelos kavorianos e tido até como santo por muitos. Entretanto, foi assassinado por matadores á mando dos senhores da guerra que tanto ele como Zagbar tentaram prender. O objetivo desse instituto é aprimorar a diplomacia intergaláctica, seja através de imagens, sons ou gestos.
Dentro do acervo do instituto existe um documento muito interessante onde Rotten descreve "o ato de se relacionar com as pessoas como se embrenhar em uma selva, onde tudo é imprevisível. De certa maneira, a selva onde quase morri sempre me vêem á cabeça quando tento me comunicar com alguém. É o medo de ver alguém numa situação parecida com aquela apenas porque dois povos não conseguem se entender que me faz atuar nesse campo".

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