entenda:

aforismos futurismos
futurismos aforismos
afoturismos

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Museu da Morte



Recentemente descobri que minha colega, Ludmila Puzzi, está envolvida na construção de um museu em São José do Barreiro, Vale do Paraíba. Bem, o tema do museu não é exatamente sobre a cidade, muito menos sobre a escravidão ou o café; é um museu sobre a morte. Senão me engano é o primeiro museu orientado para esse tema.


Bem, não é uma iniciativa gótica, embora eu ache que eles iriam adorar, mas uma proposta de estudar a mentalidade, como o homem encarou a morte ao longo da história. A inspiração básica aí seria o trabalho do historiador francês Phillipe Àries, mas também ao historiador João José Reis que estudou os rituais mortuários entre escravos e fazendeiros e reconheceu neles marcas da sociedade colonial. Aliás, o trabalho de Ludmila foi exatamente nessa direção ao enfatizar o Cemitério de Escravos de São José do Barreiro e as transformações que aconteceram em sua geografia e seu simbolismo no decorrer das mudanças sociais.


Uma das preocupações iniciais, segundo ela mesma revelou, seria o que expor no museu. Antes de tudo tenho que esclarecer que o museu se situará dentro do próprio Cemitério de São José do Barreiro, então uma excursão pelo local já é ponto fundamental da futura instituição. No entanto, necessita-se de mais materiais para enriquecer o acervo e poder demonstrar a mentalidade sobre a morte. Achei que seria interessante demonstrar a mudança da mentalidade através da arte, aliás objeto privilegiado da análise dos historiadores da mentalidade, sendo assim, temos um acervo quase infinito: desde poemas, contos populares (como os que falei aqui anteriormente), quadros, fotos (no final do século XIX era costume tirar fotos dos falecidos e deixá-las com a família e com os ateliês), esculturas, etc.


Ainda não há data para a instalação do museu, mas até lá ainda dá para contribuir e muito através de sugestões aqui, nesse link.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Aposentadoria

Corria pelo mato, olhando a cada passo desordenado apra trás, tentando ver se o rastreador continuava atrás dele. Estava muito escuro, só que via eram sombras, não tinha certeza se aquela ali era uma árvore ou o caçador. Na dúvida, continuava correr, com mais força ainda.
Um piso em falso, caiu do barranco. Desesperado tentou encontrar algum canto onde pudesse se esconder pelo menos. Tateando o chão se cortara com um caco de vidro ou pedaço de madeira, não sabe. É o fim: ele vai sentir o cheiro.
Sem outra idéia, deita-se no chão e fica imóvel com a esperança de que o rastreador não o veja. Esconde a mão ferida debaixo do corpo. Olha pra cima, para o alto do barranco, consegue ver perfeitamente o seu topo. Um chapéu, vê um chapéu aparecer. Lentamente a figura se mostra. Com uma capa um pouco esburacada nas pontas, o rastreador pára e observar a noite. O homem pode ver sua silhueta perfeitamente; sua frio. Ele coloca a mão no rosto, aperta alguma coisa, deve ser seu potente nariz de mentira. Ninguém sabe como ele funciona, só sabe que quando ele coloca essa coisa para funcionar sente o cheiro de uma paca a dois morros de distância.Eles são conhecidos por duas coisas: seu olfato e sua impiedade.
O homem sua, tenta diminuir o som de sua respiração. O rastreador meneia a cabeça. Olha para o fundo do barranco: pronto, foi achado.
Não há mais o que fazer. O impulso é fugir e é o que o homem faz. Levanta e dispara.O estampido seco, o homem cai no chão. Urra de dor, tenta levantar, mas o tiro foi bem nas costas. Não consegue. Rasteja um pouco. Ouve o som das botas do rastreador: estão ficando próximas. Mas desiste, não conseguirá ir muito longe. Vira-se e apela ao caçador:
-Por favor, senhor! Não me leve de volta... por favor (gagueja) me mata aqui!
O rastreador pega as mãos trêmulas do homem e as amarra. O levanta e coloca sobre as costas. O homem continua implorando, entre um grito de dor e outro. Chegam até á carroça metálica do rastreador. Joga o homem na caçamba e liga o motor, que mais parece uma velha tossindo.
-Me mata, senhor, por favor! O barão vai me maltratar por uns meses, ninguém merece morte loga do jeito que ele faz com os fugidos, ninguém merece... O senhor num sabe o que é aquilo!
A voz metálica finalmente responde ás súplicas:
-Eu só pego as pessoas, não mato.
-Mas, senhor, me mata, pelo amor de Deus! Eu te do tudo o que eu tenho, juro! Debaixo da minha cama, pode procurar, tem uma caixa cheio de conchas que eu guardei nesses anos todos. É sua! Só me mata antes!
O rastreador continua indiferente.
-Ninguém merece aquilo... meus parentes tudo morreram assim, depois de semanas na sala do matadouro, e a gente ouvindo eles gritar por nós... se tivessem matado eles antes não teriam sofrido tanto... por favor, senhor, me mata!
O rastreador começa a se incomodar com a ladainha.
-Se o senhor pudesse fazer uma pessoa que goste sofrer menos não faria? Eu sei que o senhor não me conhece, mas o que eu peço é pouco. O senhor diz que acertou errado e eu morri e não leva bronca do barão, é isso!
Silêncio.
-Por favor, senhor, eu não aguento mais tanto sofrimento, não aguento mais viver naquelas minas, ver minha gente sendo judiada. Se o senhor visse todo dia o que eu vejo também ia querer fugir de lá, mesmo que fosse morto.
O rastreador finalmente fala:
-Então porque não se matou?
-Porque eu tinha esperança de sair vivo de lá, mas agora, senhor... se o que me resta é a morte eu quero a morte. Tudo pra não voltar pra lá.
O rastreador pára a carroça de metal. Sai da frente e vai até a caçamba. Olha por uns instantes o pobre diabo. Pega a arma. Antes de se ouvir o tiro, o condenado diz baixinho, como um alívio:
-Muito obrigado...
O rastreador volta para a frente da carroça e liga de novo a máquina. Ainda não entendeu porque fez isso. Talvez seja o cansaço, afinal são mais de vinte anos ou mais fazendo isso. Quantos já não pediram o mesmo. É o cansaço. Parece que isso nunca vai acabar. Bem, talvez um dia isso acabe...


Um homem corre pela casa, esbarra na mesa da cozinha, deixa cair o vaso de flores que a enfeitava. Atravessa o corredor quase tropeçando. Entra em um quarto. Revira o armário, tenta achar a arma que costuma guardar aqui. Não acha. Será que ele a pegou? Vê a janela, tenta abrí-la. O som da porta fechando. Olha para trás e lá está a figura obscura, de chapéu, arma em punho e a capa toda esburacada (um pedaço ficou preso na porta). Desiste de arrombar a janela. tenta ser calmo e encarar o perigo.
-Mas o que você quer? Te pagaram para me pegar, né? Diga, quem pagou? Quanto foi? Você sabe que eu posso dar muito mais pra você não me pegar!
A voz metálica responde:
-Seu barão, não vim aqui pra te pegar não... vim aqui pra te matar.
O rosto do homem empalidece, está petrificado.
-Mas quem...
-Não tem ninguém não, seu barão. Tô fazendo isso por minha conta... vim pedir minha aposentadoria.
O tiro atravessa a janela, um corpo cai ao chão e outro sai pela porta, sereno... finalmente.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Antióquia

Ouço o som dos automóveis lá fora, cruzando os ares. Alguns totalmente irritantes, com seus pigarros intensos. Mas não me afetam muito, continuo comendo meu melão. De onde vim não tinham melões como esse. Não tenho certeza se é transgênico ou orgânico, porque não sei se os que comia era orgânicos ou transgênicos. Mas o que importa? está delicioso e pronto.
Senta um casal japonês na mesa á minha frente. Eles falam muito alto, mas finjo que não estou nem aí. Aliás, é impressionante a quantidade de asiáticos aqui; andando pelas ruas, dez em cada oito pessoas são chineses, coreanos, japoneses ou de qualquer outro país onde as pessoas tem olhos puxados. Maurice, meu amigo, disse que tinha a ver com a queda dos Tigres Asiáticos, a maioria deles vieram para cá então, onde havia mais oportunidade. É... quando a situação aperta não há nacionalismo que aguente.
Quem sou eu para falar deles. Eu mesmo saí de meu confortável, mas paupérrimo país para viver em Antióquia. Não que eu gostasse muito de meu país, mas era meu país, eu nasci ali. Pensando bem, acho que isso nem importa mais. Afinal, é apenas uma pedaço da crosta terrestre com pessoas em cima. De qualquer maneira, mesmo não gostando tanto assim de minha terra natal, decididamente não gosto de Antióquia também. É uma cidade enorme onde tudo parece ruína, quando você passeia pelas ruas é inevitável sentir um cheiro de óleo queimado e peixe, as pessoas só estão interessadas no seu dinheiro, dê você á eles voluntária ou involuntariamente. Que beleza há aí? Antióquia, ao meu ver, é o fim do poço da Humanidade.
E, veja bem, até uns trinta anos atrás era um monte de casas de alvenaria se diluindo á cada chuva ácida de verão. Se não fosse por esse enorme lixão no seu subsolo isso aqui continuaria sendo um deserto de veraneio. Antióquia... o maior ferro-velho da Historia.
Acabou o melão, que pena! Bem, pelo menos os japoneses pararam de berrar um para o outro. Odeio quando a pessoa termina de comer o que tem que comer e fica na mesa do restaurante sem fazer nada, olhando para o ponto cego das coisas, mas é exatamente o que estou fazendo agora. Se estivesse com a boca aberta seria o mesmo que ver um jacaré na beira do rio depois do almoço. É melhor me levantar e fazer algo, chega de tanta letargia.
Atrás da minha mesa está uma enorme janela, onde vão os casais de namorados (endinheirados, é claro) trocar beijos e admirar essa bela paisagem que é Antióquia. Mesmo com sua cor onipresente de ferrugem, a cidade tem um certo charme quando vista assim. Talvez seja algum efeito da janela, sei lá. A cada dia os edifícios crescem mais um metro e não é possível mais ver suas bases. A nuvens atrapalham a visão. Na realidade não são nuvens de verdade, mas gases tóxicos expelidos pelas fábricas e pelo lixo encrustado na antiga superfície da cidade. Vez ou outra algum maluco louco por adrenalina tenta descer até lá e voltar sem ficar inconsciente e acaba intoxicado.
Estranho... eu não tinha visto aquele prédio amarelo ali. Não é uma fábrica, deve ser mais um restaurante ou então um bordel. O alarme de meu relógio dispara, está na hora, tenho que subir e fechar o negócio. É um poço de chorume, estamos tentando vender para dois sheiks. Um já concordou com a nossa divisão nos lucros o outro ainda está tentando pechinchar. Tomara que ele tenha desistido se não vou passar mais uma semana nesse hotel. Se isso acontecer, pelo menos tenho os melões para me consolar.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Ave burocracia!

Burocracia é uma coisa fantástica, para não dizer outra coisa. Hoje, por exemplo, perdi toda minha manhã e parte da tarde esperando na fila de atendimento da faculdade e tentando explicar que eu existo (uma vez que o computador sacana alegava que não estava mais matriculado, na verdade, um conflito de grades curriculares gerou a pegadinha). Vejam só, daria até um belo contou ou no mínimo uma ótima tira.
Agora Kafka faz todo sentido...

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Brasil, país do steampunk

Vocês já vão entender o título. Estava eu parado no sinal quando pára ao meu lado um homem numa lambreta. Logo percebi meu erro ao classificar aquele veículo como lambreta. Na verdade o esqueleto lembrava uma lambreta antiga, mas á segunda olhada você via elementos de uma bicicleta (o guidon, a corrente) e outros de uma carroça (onde ficaria o assento do carona). Além disso, havia partes feitas de madeira, se não me engano de cerejeira, que lembravam gavetas, onde o dono deveria guardar ferramentas ou compras. Entre o guidon e o assento do motorista, ficava uma plataforma de madeira, onde ele estava apoiando um butijão de gás.
O sinal abriu e a pseudo-lambreta disparou deixando para trás um rastro de fumaça danado, o que me deixou em dúvida se era movido á gasolina ou á vapor. Se for realmente á vapor já sabemos quem será o patrono da futura Loja Steampunk Amazônica.
Mas o caso é seguinte: provavelmente invenções como essas não são nada raras e devem existir pelo Brasil todo, aliás. Ora, basta nos lembrarmos do Tião Coió e suas coiobólicas. O inventor brasileiro, aquele que vive aí por esse mundaréu entre o anonimato e a chacota da comunidade, une á criatividade á experiência, criando portanto obras que denunciam a sua herança, muitas vezes de artesão, com o que há de mais novo por aí, as novas bugigangas que surgem como moda. O resultado é uma coisa que se aproxima, fazendo uma pequena abstração, do steampunk, ao fundir passado e futuro, criando algo alternativo. Ora, uma lambreta-bicicleta-carroça (possivelmente á vapor) seria possível no início do século passado, por que não?
Nós que vivemos na "periferia" do mundo temos as melhores lições de steampunk nem sempre na História ou na Liteatura, mas no cotidiano, nos contrastes e personagens que habitam nossas cidades.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Dusek e o apocalipse

Nessa onda de "2012, fim do mundo" me lembrei no meio de tanta coisa relativa ao apocalipse que produzimos nos últimos anos da contribuição de Eduardo Dusek, a música Nostradamus.
Debochando da promessa de fim do mundo em 1999 feita pelo profeta Nostradamus, Dusek fala de um dia em que o mundo acabou (o que o narrador da música só percebe quando liga pra alguém e ninguém atende, afinal os prédios caindo e as pessoas correndo está dentro do normal).

Nostradamus
Eduardo Dusek

Naquela manhã
Eu acordei tarde, de bode
Com tudo que sei
Acendi uma vela
Abri a janela
E pasmei

Alguns edifícios explodiam
Pessoas corriam
Eu disse bom dia
E ignorei

Telefonei
Pr'um toque tenha qualquer
E não tinha
Ninguém respondeu
Eu disse: "Deus, Nostradamus
Forças do bem e da maldade
Vudoo, calamidade, juízo final
Então és tu?"

De repente na minha frente
A esquadria de alumínio caiu
Junto com vidro fumê
O que fazer? Tudo ruiu
Começou tudo a carcomer
Gritei, ninguém ouviu
E olha que eu ainda fiz psiu!

O dia ficou noite
O sol foi pro além
Eu preciso de alguém
Vou até a cozinha
Encontro Carlota, a cozinheira, morta
Diante do meu pé, Zé
Eu falei, eu gritei, eu implorei:
"Levanta e serve um café
Que o mundo acabou!"

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Brasil, país do futuro

Atrasados? Mas temos tv digital de graça! Arcaicos? Mas usam palm top nos censos do IBGE!
Francamente, acho que isso de "país atrasado" é intriga da oposição...

Afoturismos VII

O homem assina o contrato é levado até uma câmara onde recebe uma injeção. Depois levanta e volta á sala de onde saiu.
-Então é só isso?
-Sim.
-Quer dizer que agora eu sou imortal?
-Bem, a não ser que dêem um tiro na sua cabeça...
-Como assim?
-Veja bem, você assinou o pacote médio, quer dizer que você é imune á qualquer vírus ou bactéria, ou seja, você é imortal bacteriologicamente.
-Mas se eu for atropelado ou atingido por uma bala?
-Aí o senhor morrerá.
-Vocês não podem fazer nada?
-Nós temos o pacote plus que cobre precisamente acidentes.
-Quanto custa?
-12 milhões de conchas.
Pensa um pouco.
-Eu vou querer!
Passa o cartão.
-Pronto, agora o senhor tem o pacote plus! Jacques, leve esse senhor para o cofre!
-O quê? Como assim cofre?
-O senhor ficará trancado num cofre, á salvo de qualquer eventual acidente. Não se preocupe há uma ração lá e água esperando pelo senhor. Boa sorte!
Jacques pega o homem pelo braço e o carrega.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Dona Morte

O Dia da Morte, Wilhem Adolphe Bouguerau (1859)
A morte por definição é o fim da vida de um organismo. Todos os seres vivos morrem, mas só o homem é capaz de transformar esse acontecimento fisiológico em um ato simbólico.

A morte sempre atormentou o homem e não é nenhuma surpresa que as artes tenham se dedicado e muito ao tema. Desde as trovas medievais até os últimos filmes em cartaz, a morte está presente.

Ora, a Divina Comédia de Dante Alighieri, a lenda da fonte da juventude procurada por Ponce de León, O Último Selo de Ingmar Bergman, Sandman de Neil Gaiman e Incidente em Antares de Érico Veríssimo tem em comum quem mais senão a Dona Morte.

Mas o tema é muito vasto e quero me dedicar aqui a falar apenas de um nicho dela: os contos populares. Geralmente os contos populares sobre a Morte tendem a personificá-la como um figura esquelética, coberta por um manto e com uma foice (imagem baseada no personagem Anjo da Morte descrito na Bíblia e no Talmud) a quem todos tentam sempre enganar, mas nunca conseguem. O mais interessante nesses contos não são o final, pois sabemos que ninguém escapará desse implacável personagem (como, de fato, ninguém escapará mesmo), mas a maneira com que tentam iludi-lo.

Meu avô contava uma história na qual um homem pediu para a Morte ser madrinha do seu filho que ia nascer só para tentar ter mais intimidade com ela e convencê-la a não levá-lo. Bem, a Morte, sempre profissional, diz que o levará sim quando chegar a hora, mas dará um aviso. Tempos depois esse homem recebeu o aviso nos sonhos e, decidido a ludibriar a Morte, se barbeara todo, raspara o cabelo e se cobrira de trapos. Enfeitara seu empregado de modo a ficar parecido com ele e o mandara á cidade e se fingiu ser um mendigo. A Morte chega e é recebida pela mulher do cumpadre que diz que ele foi pra cidade e o visitante então, cansado, vê o mendigo e diz: Ah, então eu levo esse careca aí mesmo...

Há uma outra versão coletada pelo biólogo inglês Alfred Russel em suas andanças pelo Norte do Brasil na qual o cumpadre se disfarça de escravo, mas o final é o mesmo, é lógico.

Existe um outro no qual um homem faz um acordo com a Morte, pedindo para ela mandar um aviso para ele quando estiver chegando a sua hora. Esse homem então se entrega ás mais radicais aventuras e quando volta para a casa recebe a visita da dona Morte que veio para buscá-lo. Ele,revoltado, diz que ela não deu nenhum aviso. Ao que ela replica, todos os perigos que se safou desde o tubarão que viu até a avalanche que escapou, foram avisos suficiente, mas ele não considerou eles como tal. Então ele implora por mais um tempo e um aviso mais claro, ela, irritada, pede que ele escolha uma imagem então, ele fala de um baile onde estão tocando um sucesso antigo, cheio de pastorinhas. Ela aceita e sai, o homem, todo feliz, acha que está feito: agora é só não passar perto de casas de festa ou ficar na cidade em tempo de festa junina. Eis que quando vai sair na rua seu vizinho está fazendo uma festinha para a mãe, tocando músicas do seu tempo e com suas filhas como pastorinhas. A Morte chega e pega o homem pretensioso então. Há uma variante para essa história também, romanceada pelo escritor Malba Tahan sob o nome de Sob o Olhar de Deus, se não me engano.

Bem, exemplos existem e aos montes, mas também existem outras histórias onde, contrariando o senso comum, os protagonistas conseguem enganar finalmente a Morte. Existe um conto muito antigo, vi uma vez enquanto folheava um livro num sebo, onde um homem está determinado a matar a Morte e a chama para uma conversinha... munido de uma 45. Muito criativo realmente e válido, por que não?, afinal isso é literatura, ela pode e foi feita para desafiar a realidade.

Mas mesmo assim, confesso, que histórias como as duas descritas acima me cativam e muito, são uma grande prova da inventidade (dando uma de Odorico Paraguaçu) de nosso povo.

domingo, 1 de agosto de 2010

Da Iconoclastia

O Dr. Bento Aranha Castro levantara de sua cadeira e agora se dirigia a seu destino, o púlpito, onde falaria seu primeiro discurso como membro da Academia Brasílica de Ciências.
Colocara o calhamaço de folhas sobre ele, retira o pincenê e o repousa sobre a pilha de folhas. Um pigarro. Dois pigarro. Olha para a frente, avista aquele mar de acadêmicos, cientistas, todos encasacados, com imponentes cavanhaques. Inicia o discurso:
-Senhores, tenho a alegria de participar dessa academia que tem sido um dos maiores orgulhos para o desenvolvimento de nosso país. Quem me conhece sabe que não estou exagerando nos elogios, é verdade. Se não fosse por essa academia, criação de nosso prodigioso Imperador,não teríamos conhecido a Ciência no Brasil, a não ser pelos cientistas europeus que esporadicamente nos visitam. Sem ela nunca teríamos recriados portos modernos ou mesmo catalogado todas as espécimes animais e vegetais da região Amazônica. Sem ela não seríamos a potência que somos na América e no mundo.
Mas, senhores, eu me pergunto se conhecemos realmente a Ciência. Trabalhando nas escolas, ministrando aulas, eu vejo cada vez mais que não ensinamos Ciência, mas apenas repetindo-a, como se fossemos papagaios. Nossos melhores alunos são aqueles que nos dizem que o som não se propaga no vácuo e não aqueles que entendem porque o som não se propaga no vácuo.

Pausa, o discurso tem provocado já reações razoáveis nos rostos do demais membros da academia. Dr. Castro bebe o copo de água localizado perto de seu calhamaço. Novamente toma a palavra e continua o discurso.
-Senhores, o que quero dizer é que não fazemos mais Ciência, mas uma religião qualquer que se diz ser Ciência. Vejam bem, o conhecimento que conquistamos através dos anos hoje é adotado como dogma. Eu digo isso porque trabalho com a educação e na educação isso é muito claro. Os alunos tornam-se profissionais que não compreendem a Ciência, apenas a reproduz como um autômato. E para se tornar um "cientista" eles vêem que é preciso perder sua capacidade criativa. Ora, que Ciência é essa que nos castra a imaginação, combustível de nossos insights, e a compreensão, motivo primeiro de nos aventurarmos pelo mundo do conhecimento científico.
Se Kant disse que para ser um ser racional é necessário compreensão e sensibilidade, nós, senhores, não somos nenhum pouco racionais. Em matéria de racionalidade estamos na Idade da Pedra, por isso, conclamos a todos aqui a buscar dentro de nós nosso espírito iconoclasta, pois, só a partir da destruição desta catedral científica que criamos é que estaremos realmente á praticar a Ciência. Obrigado.
O Dr. Castro pega o calhamaço e o pincenê e retira-se do púlpito. A exigente platéia, após o susto inicial - na verdade, mais para uma cutucada na ferida que um susto - , leva alguns minutos para digerir a crítica e algumas tímidas palmas brotam da multidão de doutores. Dr. Castro não se intimida, já esperava essa reação. Ali estava ele, um iconoclasta sozinho tentando derrubar com um estilingue uma enorme catedral cheia de sacerdotes arrogantes e encasacados.

A Dança das Borboletas

A cidade estava tranquila como sempre é aos domingos. Entenda-se aqui tranquila como “sem engarrafamento”. Mesmo o mais desavisado observador conseguirá perceber que tudo está igual, tirando, é claro, o engarrafamento. Os outodoors continuam lá, as pixações, as bicicletas, os motoqueiros “ligeirinhos”, os botecos, as lojas, os mendigos. Está tudo do mesmo jeito de sempre. No entanto, não está.

Á duas semanas instalaram aquele que promete ser a salvação da cidade: o temporizador. Foram colocadas torres ao redor de todo o perímetro urbano. Discretas, mas estão lá; emitindo ondas eletromagnéticas. Sua função é bem simples: afastar toda possível frente fria perigosa da cidade, impedindo enchentes.

É uma tecnologia que já vinha sendo desenvolvida nos EUA, desde o furacão Katrina. Adotaram o sistema nessa cidade graças aos estragos das últimas enchentes. A cidade demorou quase um ano para se recuperar. Todos ficaram traumatizados de certo modo com o ocorrido. Mesmo com a promessa de bom tempo e nenhuma enchente a população ainda anda desconfiada. Mesmo obtendo sucesso nas cidades do Sul do EUA, todos estão meio céticos quanto ao seu poder, até o governo. Desconfiança compreensível, de fato, até típica de um povo que cisma muito fácil com a modernidade, mas depois de um tempo já se alimenta dela.

O fato é que até agora não ocorreu nenhum temporal daqueles. Na realidade, esse mês de outubro está muito seco até, nenhuma chuvinha. Que eu saiba o propósito do temporizador não é expulsar as chuvas, mas só os grandes temporais.

O sol está implacável, como sempre. Os carros continuam passando nas ruas. Tudo normal para um fim de semana; nada explodiu, não brotou um tentáculo em ninguém. Parece que o temporizador nem existe. No primeiro final de semana todos estavam apreensíveis, a cidade estava meio tensa. Mas agora, tudo tranquilo. Tranquilo demais, chega a dar tédio, o tédio de sempre, o tédio dos domingos.

Uma borboleta pousa no parapeito da janela. Azul, não pára de bater as asas. Outra borboleta. Três, quatro, seis borboletas. Milhares de borboletas! Parece que jogaram toneladas de papel picado sobre a cidade. Um enxame de borboletas chegando pela avenida, debruçando pela janela dá pra ver que elas vem do interior, pelo menos a maioria.

Há alguns dias eu percebi que estava vendo borboletas pela cidade, mas parece que de repente elas decidiram invadir a cidade.Elas se espalham pelas ruas. A maioria fica voando pelos prédios. Várias entraram pela janela. Tive que fechar imediatamente todas as janelas da casa. Elas entraram e ficaram dançando sobre a estante, ao redor da lâmpada – mesmo ela estando apagada. Depois foram caindo no chão, agonizando-se. Tudo aquilo era completamente surreal. Logo o chão do apartamento estava coberto de borboletas.

Não foi só o chão do apartamento que ficou coberto delas, as ruas da cidade também. Mesmo com muitas ainda voando freneticamente pelo céu, as ruas estavam cheias de asinhas batendo, desorientadas, formando um tapete vivo um pouco macabro.

Ninguém entendeu nada. Depois de duas horas não haviam mais borboletas dançando no céu, nas casas e lojas que invadiram. Tirando uma ou outra ainda agonizando, todas estavam estateladas no chão. As pessoas saiam na rua, olhavam para cima, procurando outra nuvem de borboletas loucas. Um senhor empurrava com sua vassoura pra fora de sua varanda um volumoso cardume desses insetinhos. Alguns curiosos examinavam seus pequenos corpos, tentando entender o que tinha acontecido, procurando pelo menos uma pista. Era borboletas de todo tipo, de todas as cores, a cor predominante no entanto era o rosa. Olhar as ruas era como olhar o solo coberto pelas flores de jambo. Seria muito bonito se não fosse macabro.

Depois de dois dias saiu a nota oficial: mudança no clima, o aquecimento global estava interferindo na orientação migratória das borboletas. O fato, na verdade, é que as ondas do temporizador não afastam só tempestades como atraem borboletas. Aquele enxame monstruoso de borboletas foi chamado para a cidade, e depois de uma viagem tão longa, exaustas e desorientadas, morreriam todas elas aqui, num triste espetáculo. Não demorou muito para associarem a dança das borboletas com o temporizador. Muitos protestos foram feitos no decorrer da semana, mas com o tempo eles foram diminuindo. Quando o chefe do programa disse que a única solução seria desligar o temporizador e deixar a cidade livre para as chuvas de novo, a maioria da população concordou que borboletas não valiam tanto. Hoje, “danças de borboletas” são comuns, já aconteceram cinco, e cada vez menos enxames aparecem. Esses mini-massacres não espantam mais ninguém, só aporrinham. Eu mesmo maldizo esses insetinhos quando interditam as avenidas e me atrasando para o trabalho por causa de enxurradas de borboletas. A verdade é que esse é o preço da segurança. A “dança das borboletas” é um efeito colateral para se construir uma vida urbana estável, sabe? Mas ás vezes lamento isso. O mundo ficou mais seguro, mas também menos colorido.